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/Agustín Ferrante: O solista do petróleo

Nascido na cidade de Buenos Aires em 14 de outubro de 1938, filho do operário Giuseppe, um modesto imigrante italiano que só foi alfabetizado já adulto, e de Ângela, uma dona de casa, também de origem italiana, que nunca aprendeu a ler, Agustín Juan Ferrante é um pioneiro do uso da computação em engenharia estrutural no Brasil. Mas é, sobretudo, o homem que, ao lado do professor Lobo Carneiro, abriu novos caminhos para a COPPE em direção ao mar.

O falecido professor Fernando Lobo Carneiro é conhecido como o “maestro do petróleo” na COPPE pelo papel que desempenhou nos primeiros tempos da cooperação com a Petrobras, ao comandar com sabedoria a combinação de prestação de serviços, pesquisas relevantes para o avanço da engenharia nacional e formação de alunos. Se Lobo Carneiro era o maestro, então o solista daquela bem-afinada orquestra era Agustín Ferrante.

Foi dele a iniciativa de procurar a Petrobras para propor um trabalho conjunto, de longo prazo, para formação de recursos humanos e desenvolvimento de ferramentas computacionais para a engenharia de estruturas.

Não foi fácil convencer os atarefados engenheiros da Petrobras de que aqueles professores e estudantes, habitantes do mundo acadêmico, seriam capazes de entender e atender às necessidades e premências do universo empresarial. Depois de muita insistência, finalmente um convênio foi assinado em 1977, dando início a uma cooperação que, hoje, três décadas depois, mobiliza pesquisadores de quase todos os ramos da engenharia e de outras áreas da ciência.

A ligação da COPPE com a Petrobras, modelo de cooperação entre academia e indústria, equipou a COPPE com alguns dos mais sofisticados laboratórios do mundo e formou, para as empresas e as universidades brasileiras, recursos humanos de alto nível, que ajudaram a conquistar para o Brasil a liderança mundial da tecnologia de produção de petróleo no mar.

O menino que levava a bandeira

Esta história começa num dia de 1964, quando o jovem Agustín ainda era aluno de graduação do curso de Engenharia Mecânica da Universidade de Buenos Aires. Bom aluno desde sempre (aos 11 anos era o menino que “carregava a bandeira” nas solenidades escolares, escolhido para o posto por causa das boas notas no boletim), ele foi indicado pelo professor da cadeira de Estruturas para fazer um estágio nos Estados Unidos, no prestigioso Massachusetts Institute of Technology, o MIT. Detalhe: o estágio era em Engenharia Civil e Ferrante cursava Engenharia Mecânica. Era, porém, uma oportunidade irrecusável para o rapaz de família modesta, que só pouco antes tinha começado a seguir o curso no período diurno, graças a uma pequena ajuda de custo que a universidade pagava a alunos que atuavam como monitores de disciplinas. Antes de se tornar monitor, freqüentava a universidade à noite e trabalhava durante o dia, fazendo “bicos” em oficinas mecânicas e como caixeiro de lojas, para ajudar nas despesas da família.

O estágio no MIT incluía acompanhar o trabalho de um grupo de pesquisa. Ao fim dos quatro meses de estágio, foi convidado a ficar e fazer o mestrado, dentro de um projeto de pesquisa com nome que lembrava doce alemão: Strudl. Era a sigla em inglês de Structural Design Language, ou “Linguagem para Cálculo e Projeto de Estruturas”. Tratava-se de desenvolver um sistema para o uso de computador na engenharia de estruturas, uma absoluta novidade na época.

Ferrante voltou à Argentina apenas para prestar os exames finais da graduação e imediatamente retornou ao MIT. Planejava concluir o mestrado em um ano e voltar a Buenos Aires para procurar emprego. Não foi o que aconteceu. O rapaz que antes só pensava em se formar engenheiro mecânico para ir logo trabalhar numa fábrica - onde esperava passar os dias lidando com as máquinas e motores barulhentos que o atraíam desde criança - estava irremediavelmente mordido pela mosca acadêmica. Sempre trabalhando com o Strudl, acabou ficando quatro anos no MIT, até obter o título de doutor.

Voltou para a Universidade de Buenos Aires, agora como professor e responsável pelo então incipiente Centro de Computação da Faculdade de Engenharia. Mas não ficou muito tempo. Era uma época de muita turbulência política na Argentina. A faculdade ficava em frente à sede da então aguerrida CGT, a Confederação Geral do Trabalho argentino. Volta e meia, manifestações dos trabalhadores eram dissolvidas com violência pela polícia e eles iam buscar abrigo no interior da faculdade. Os policiais ficavam do lado de fora, esperando qualquer um que saísse de lá de dentro. “Quando se abriam as portas, tínhamos que passar por um corredor polonês’, com a polícia de cassetete na mão”, conta Ferrante.

A vinda para o Brasil

Cansando de tantos sobressaltos, deixou a Universidade e se integrou a uma comissão formada pela Unesco para vir ao Brasil avaliar os cursos de engenharia brasileiros. A comissão tinha sido pedida pelo Ministério da Educação, que queria identificar os cursos com chances de iniciarem uma pós-graduação. Na época, final de 1972, só havia pós-graduação na UFRJ (a COPPE tinha sido criada em 1963 e acabava de formar seu primeiro doutor), na PUC carioca e na Politécnica de São Paulo, que ofereciam cursos de mestrado.

Ferrante e seus dois companheiros de comissão, um escocês e um israelense, percorreram meia centena de faculdades, da Paraíba ao Rio Grande do Sul. E foi assim que acabou se transferindo de vez para o Brasil: a Universidade Federal do Rio Grande do Sul buscava doutores para ajudá-la a formar sua pós-graduação. Ao mesmo tempo em que ajudava o coordenador, José Serafim Gomes Franco, a montar o curso de mestrado, Ferrante continuava a desenvolver o Strudl. O sistema do MIT fora criado para rodar em computadores IBM, mas as universidades brasileiras, que então começavam a instalar seus centros de computação, tinham optado por máquinas Burroughs. Era preciso adaptar o Strudl para Burroughs. Ferrante começou a desenvolver a adaptação, iniciando um sistema que ganhou o nome de Lorane.

A essa altura, ele já estava casado com Dorinda Maria, uma jovem de origem espanhola, que conhecera na Universidade de Buenos Aires, onde ela era secretária do decano. Tinham se casado no final de 1971. Em janeiro de 1974, já em Porto Alegre, nasceu o primeiro filho do casal, Fernando.

A vida pessoal e profissional corria mansa – exceto pelo fato de que Ferrante ainda sonhava ter algum tipo de contato com indústrias. Queria alimentar suas pesquisas com os desafios apresentados por empresas e via poucas perspectivas de fazer isso na capital gaúcha. “Eu queria fazer pesquisa que servisse para alguma coisa, pesquisa aplicada. No fim das contas, um engenheiro precisa construir algo - um programa, uma ponte, uma máquina – e ver que a coisa funciona”, diz ele.

As voltas que o mundo dá

É por essa época que ele começa a freqüentar a COPPE. Em 1973, num congresso em Buenos Aires, tinha conhecido Lobo Carneiro, coordenador do Programa de Engenharia Civil e um dos maiores especialistas em Estruturas do Brasil. Lobo Carneiro convidou-o a dar um curso na COPPE, como professor visitante. A partir dali, todos os anos ele fugia do frio gaúcho e passava o inverno no Rio, dando cursos e orientando teses. Na bagagem, trazia o Strudl – ou melhor, o Lorane, pois que o computador da UFRJ também era Burroughs. Com dois alunos de doutorado, Nelson Ebecken e Edison Castro Prates de Lima, desenvolvia versões do Lorane para aplicação em análise dinâmica e não-linear.

Quem fala em comportamento dinâmico, não-linear, fala também em plataformas de petróleo balouçando no mar, submetidas às inclemências do tempo... Ferrante lia artigos em revistas científicas apontando as possibilidades de aplicação das novas ferramentas computacionais no projeto de estruturas para operação no mar. No final de 1974, a Petrobras havia anunciado a primeira grande descoberta de óleo na bacia de Campos. Em 1976, ele tomou a decisão: transferiu-se de vez para a COPPE.

“Eu queria ser engenheiro mecânico, acabei ficando na Engenharia Civil. Sonhava trabalhar numa fábrica, acabei ficando na universidade e lidando com programas de computador. Aquele convite do MIT foi um trem que passou na minha vida e me levou para outra estação” – filosofa Ferrante. Em junho de 1974, quando ainda morava em Porto Alegre, viajou com a família a Buenos Aires para ir ao Consulado brasileiro renovar o visto temporário. Ao puxar os documentos do envelope, caiu a certidão de nascimento do filho brasileiro, emitida em Porto Alegre seis meses antes. O funcionário viu o papel e concedeu um visto de permanência para a família toda. Assim, quando decidiu se fixar no Rio de Janeiro, ele não teve nenhuma dificuldade burocrática. “Nós pensamos que fazemos as escolhas de vida, mas muitas vezes é a vida que faz escolhas por nós”, diz ele.

Mas nem por isso é homem de se deixar levar pelo destino. Traça os próprios rumos e os persegue. Ao se instalar no Rio, começou imediatamente a contatar os engenheiros da Petrobras. Insistia na oportunidade para estabelecer uma cooperação com a COPPE. As conversas, porém, não evoluíam. Todos os interlocutores achavam a idéia muito interessante – mas nada acontecia.

As coisas estavam nesse pé quando assumiu a chefia da Divisão de Engenharia um engenheiro chamado Sergio Mueller. Ferrante, que a essa altura já quase desanimava de convencer a Petrobras, foi procurá-lo, mais pela força do hábito. Para sua surpresa, o novo interlocutor foi firme, objetivo e rápido: “- Traga uma proposta concreta na semana que vem”. Atarantado, Ferrante correu a pedir socorro a Flavio Grynszpan, o coordenador da Coppetec, que rapidamente o ajudou a formatar uma proposta de convênio. O tão sonhado acordo de cooperação COPPE/Petrobras foi assinado no segundo semestre de 1977.

A fase de ouro da cooperação com a Petrobras

O primeiro ano do convênio correu lento. A COPPE organizou para a Petrobras um curso e um congresso internacional sobre engenharia offshore, o primeiro de uma série que marcaria época e só se encerraria no começo dos anos 2000. Em 1979, um acidente com a torre de processamento de Garoupa deu à COPPE a oportunidade de mostrar à Petrobras o quanto a universidade podia criar soluções e ajudar a resolver problemas da empresa. Ferrante e uma equipe de jovens pesquisadores analisaram o caso e ajudaram a provar que a empresa projetista norte-americana tinha cometido um erro de projeto e, portanto, deveria indenizar a Petrobras.

Vista à distância, a dimensão do episódio pode parecer pequena. Mas em 1979/80 era preciso muita ousadia para confrontar uma poderosa empresa de engenharia de reputação internacional, tendo na retaguarda apenas um grupo de jovens engenheiros brasileiros. Ebecken, Edison, Sergio Sphaier e Gilberto Ellwanger, a elite da tropa de Ferrante naquele momento, mal tinham acabado de completar 30 anos.

A década de 80 tinha começado muito bem para Ferrante, tanto do ponto de vista pessoal quanto profissional Em outubro de 1980, nasceu no Rio a segunda de seus dois filhos, Elisa Adriana. No ano seguinte, Sergio Mueller foi transferido para o Cenpes, o Centro de Pesquisas da Petrobras, para montar ali uma Divisão de Projetos de Explotação, destinada a fazer a engenharia básica das plataformas da empresa. Começava assim a fase de ouro da cooperação com a COPPE.

“Eu ficava praticamente full time no Cenpes. Chegamos a ter uma equipe de umas 30 pessoas trabalhando lá dentro”, lembra Ferrante. “Já tínhamos controle total do sistema para engenharia de plataformas offshore”, conta. De fato, ele e sua equipe tiveram que deixar de lado aquelas versões iniciais do Lorane, o sistema desenvolvido para computadores Burroughs, porque a Petrobras operava com máquinas IBM. Retomaram, então, o Strudl e trataram de adaptá-lo às necessidades da empresa. Foi assim que criaram os sistemas Adep e Inpla, que a Petrobras passou a utilizar para projetar a construção e a instalação de suas plataformas. Uma coisa puxava outra, os temas de pesquisa se expandiam, novos alunos, professores e programas se inseriam em projetos para o Petrobras.

Uma virada radical

Mas ao raiar dos anos 90 Ferrante estava inquieto. Orgulhava-se dos resultados obtidos até então, mas se questionava sobre o futuro. A cooperação COPPE/Petrobras ganhara vida própria e ele pessoalmente já não via muita novidade no que fazia.

Foi quando começou a sonhar em fazer outra coisa, virar empresário, morar em outro país, talvez. Havia também um certo quê de nostalgia. Aos 50 anos, relembrava a infância e a juventude na Argentina, as histórias familiares. Revia-se menino de calças curtas, com o pai e o irmão mais velho, Miguel Angel, de pé no porto de Buenos Aires. Era ali que um saudoso Giuseppe levava os filhos aos domingos, só para ver os navios que chegavam da Itália. Em 1992, aos 54 anos, Agustín Ferrante atendeu ao chamado da terra de seus antepassados. Mudou-se com Dorinda, Fernando e Elisa para a Itália.

Por trás da decisão, pairava uma dúvida existencial, formulada ao modo típico de um engenheiro: “-Será que ainda tenho algum valor residual?”

De volta para o futuro

Ferrante queria, é claro, continuar a trabalhar com sistemas computacionais para engenharia. Já havia no mundo um bom mercado para sistemas desenvolvidos a partir do Strudl e adaptados para diferentes aplicações industriais. Ele não podia, porém, usar o Adep e o Inpla, porque eram de propriedade da Petrobras. Foi então procurar um antigo colega de doutorado no MIT, Leroy Emkin. Este se tornara professor do Georgia Tech, um instituto da Universidade do Estado da Georgia, nos Estados Unidos, onde ajudara a desenvolver um sucessor do Strudl, o GT Strudl.

Acabaram negociando um acordo e ele se tornou sócio do Georgia Tech para a América Latina, a Europa, parte da África e Oriente Médio. “Comercializo o GT Strudl nessas regiões, faço consultorias e dou cursos de treinamento técnico especializado”, explica. Para isso, fundou uma empresa na Itália (em Monza, onde mora); outra em Cambridge, na Inglaterra; e uma terceira no Rio de Janeiro. A do Rio se chama ISC International e é por causa dela que vem com freqüência ao Brasil. Passa três a quatro meses por ano aqui.

Cidadão do mundo, Ferrante não sabe aonde vai se fixar quando decidir se aposentar. A mulher, a espanhola Dorinda, gostaria de ficar no Rio. Fernando e Elisa, os filhos brasileiros, ambos engenheiros, vivem nos Estados Unidos. O irmão, Miguel Ángel, continua na Argentina.

Enquanto não se decide, continua a percorrer o mundo vendendo o Strudl e dando cursos de treinamento: Egito, Azerbaijão, Espanha, Macaé... Mesmo afastado da universidade, o gosto de ensinar se mantém intacto. Em agosto passado, encerrando um curso para engenheiros da Petrobras em Macaé, contava do prazer que sentira na semana anterior, no Rio, quando dava idêntico curso para outra empresa: um antigo aluno da COPPE lhe trouxe de presente uma prova aplicada por ele em 1978. É o mesmo prazer que sente quando vai ao Cenpes e não consegue “andar 10 metros sem esbarrar num ex-aluno”.

É por isso que, se lhe perguntam do que mais se orgulha na vida profissional, responde que é de ter sido, e ainda ser, um educador – “apesar de isso soar muito pomposo”. Aprendeu a valorizar a educação com o pai. Em 1918, Giuseppe era um adolescente analfabeto quando partiu sozinho da Itália para a Argentina, enviado pela família que não podia sustentá-lo. Trabalhou duro para garantir aos dois filhos a educação que lhes permitiria a ascensão social. Foi alfabetizado já adulto, por um missionário inglês, William Morris, que fundou escolas e hoje é nome de estação de trem naquele país. Ferrante tem uma profunda admiração pelos dois homens, o italiano Giuseppe e o inglês Morris. É essa admiração que está lá no fundo, animando-o a prosseguir.

  • Publicado em - 10/12/2007