/O Antigo e o Novo na Ordem Internacional: Teoria e prática
A interpretação corrente de democracia e de ordem neoliberal foi articulada com grande clareza. O tema básico é que “ a vitória dos EUA na Guerra Fria foi a vitória de um conjunto de princípios políticos e econômicos: democracia e livre mercado.” Esses princípios são a onda do futuro do qual os EUA são tanto os guardiões como o modelo”. Estou citando um respeitado comentarista político americano, mas a imagem é convencional, repetida à sociedade quase no mundo inteiro e, de maneira geral, aceita como correta até pelos críticos. Também foi enunciada como “Doutrina Cliton”, segundo a qual nossa nova missão é “consolidar a vitória da democracia e dos mercados abertos”, recentemente conquistada.
Quem quiser entender o que realmente são esses princípios políticos e econômicos vitoriosos não ouvira apenas a retórica, mas também investigará a prática concreta. É particularmente instrutivo perguntar de que maneira os princípios têm sido aplicados nos lugares onde a influência dos EUA é maior e sua interferência, menor, de forma que aparecem em sua forma mais pura. A América Latina é, sem dúvida, o campo de provas, em particular a região América Central/Caribe, onde há quase um século os EUA dominam praticamente incontestes. Trata-se de uma das piores câmaras de horror do mundo, com um chocante histórico de terror, miséria e destruição. Esse passado nos proporciona lições valiosas a respeito dos princípios políticos e econômico destinados a ser “a onda do futuro”.
A “cruzada democrática” de Washington, como é chamada, militou com fervor particular durante a era Reagan. Os estudos mais respeitados sobre esses programas são os de Thomas Carothers, que os analisa “de dentro”, pois trabalhou no Departamento de Estado de Reagan nessa área. Carothers pensa que o “ impulso de Washington em promover a democracia” é “sincero” mas, em grande medida, um fracasso. Mais que isso, o fracasso foi sistemático: nas regiões onde a influência de Washington era menor, na África do Sul, houve real avanço democrático, geralmente contra a oposição do governo Reagan, que acabou recebendo os critérios pelo processo quando este se mostrou inelutável. Nas regiões onde a influência de Washington era maior, o avanço foi menor. Carothers conclui que os EUA procuram manter “a ordem básica de ... sociedades bastante antidemocráticas” e evitar “ mudanças de cunho populista”. Como em anos anteriores, Washington adotou “ políticas pró – democracia como meio de aliviar a pressão por uma mudança mais radical, mas buscou, inevitavelmente, mudanças democráticas limitadas, de cima para baixo, que não implicavam o risco de subverter as estruturas de poder tradicionais de que os Estados Unidos há muito são aliados”.
A conclusão é correta e nos diz algo importante a respeito dos princípios vitoriosos. Mas Carothers não pergunta como Washington manteve a estrutura de poder tradicional de sociedades altamente antidemocráticas. O autor não se refere ás guerras terroristas brutais que deixaram centenas de milhares de cadáveres torturados e mutilados, milhões de refugiados e uma devastação que talvez seja irrecuperável – em grande medida, foram guerras contra a Igreja, que se tornou inimiga quando adotou “ a opção preferencial pelos pobres” e tentou ajudar os carente e sofredores a terem algum domínio sobre suas próprias vidas. É mais que simbólico o fato de que a terrível década de 1980 tem começado com o assassinato de um arcebispo e terminado com o de seis destacados intelectuais jesuítas, sempre perpetrados por forças terroristas estatais armadas e treinadas pelos vitoriosos na cruzada pela democracia. Mas esses assuntos não fazem parte da história tal como contada pelos vencedores.
Durante a Guerra Fria, tais ações eram justificadas pela suposta ameaça que a União Soviética representava para a segurança dos EUA. Antes da Guerra Fria, as políticas eram muito semelhantes, mas os pretextos eram, outros; após a Guerra Fria, as políticas continuaram, com poucas modificações, mas pretextos diferentes. O caso cubano é típico. È difícil discordar da reação de um diplomata mexicano quando Kennedy tentou organizar uma ação conjunta contra Cuba após o fracasso da invasão da Baía dos Porcos. O México não poderia participar, disse ele, porque “se declararmos publicamente que Cuba é uma ameaça à nossa segurança, quarenta milhões de mexicanos morrerão de rir”. A opinião respeitável adotou uma visão mais sóbria. Também não se perturbou pelo fato de a decisão oficial de derrubar o governo de Fidel Castro ter sido tomada em março de 1960, quando não havia conexão russa; nem pelo fato de os esforços em derrubar o governo terem aumentado após a saída dos russos. A história oficial não é questionada: passamos trinta anos defendendo-nos daquele tentáculo do poder soviético que procurava nos estrangular. É um exemplo impressionante de lealdade da cultura intelectual às doutrinada fé.
O anúncio da Doutrina Cliton foi acompanhado de um exemplo dramático destinado a ilustrar a onda do futuro: o resultado obtido pelo governo no Haiti. Como este era o argumento mais forte, nada mais justo que apresentá-lo. O presidente eleito do Haiti foi autorizado a retornar, é verdade. Mas só depois que as organizações populares foram submetidas a três anos de terror pelas forças que, o tempo todo, mantiveram laços estritos com Washington, e ainda mantêm. E depois também que o presidente Aristide recebeu “ um curso intensivo de democracia e capitalismo”, nas palavras com que seu principal defensor em Washington descreveu o processo civilizador do incômodo padre. Como condição para sua volta, o presidente Aristide foi obrigado a aceitar um programa econômico que orienta as políticas do governo haitiano para as necessidades da “sociedade civil, especialmente o setor privado, tanto nacional como estrangeiro”. Os investidores dos EUA estão no cerne da sociedade civil haitiana, juntamente com os haitianos ricos que apoiaram o golpe militar, mas ali não se encontram os camponeses e favelados haitianos que organizaram uma sociedade civil tão viva e vibrante que até conseguiu, contra ventos e marés, eleger seu próprio presidente. Esses atos inaceitáveis foram revertidos pela violência, com a cumplicidade direta dos EUA. Por exemplo: os governos Bush e Clinton autorizaram secretamente a Texaco Oil Company a Abastecer os líderes do golpe e seus partidários abastados, violando as sanções oficiais, fato crucial que foi posto às claras na véspera do desembarque de tropas americanas em setembro de 1994.
Tudo isso, contudo foi ocultado dos olhos do público pelos zelosos guardiães do pensamento adequado.A ordem foi restabelecida. O novo governo abandonou os programas democráticos e reformistas que escandalizaram Washington e é obrigado a seguir as políticas do candidato de Washington às eleições haitianas de 1990, que teve 14% dos votos. O exemplo preferencial nos ensina mais a respeito do significado da vitória da “democracia e dos mercados abertos”.
Situada em outro ponto da região, a Colômbia costuma ser descrita como uma verdadeira história de sucesso: “suas estruturas democráticas, em que pese às falhas inevitáveis, estão entre as mais sólidas do continente”, um modelo de “estabilidade política bem consolidada”- são comentários de um intelectual eminente. O governo Clinton ficou particularmente impressionado com o presidente César Gaviria, cujo sucesso mereceu a promoção a Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos. “Ele foi muito arrojado ao construir instituições democráticas em um país onde isso às vezes é perigoso”, explicou o governo americano, acrescentando que Gaviria também teve um excelente desempenho “na reforma econômica na Colômbia e na integração econômica no hemisfério”, critério para julgar um verdadeiro deDe fato, tem sido perigoso construir instituições democráticas na Colômbia, graças, em grande medida, à atuação da “democradura” – denominação dado por Eduardo Galeano a essa amálgama de formas democráticas e terror totalitário – e dos que apoiam em Washington. As “falhas inevitáveis” foram particularmente medonhas durante o regime Gaviria. Foram estudadas muito detalhadamente pelas principais organizações de direitos humanos, pela Igreja e por outros, que relataram “níveis estarrecedores de violência”, perpetrada sobretudo pelas forças armadas e policiais, bem como paramilitares a elas estreitamente ligadas, colombianas. Jorge Castañeda escreve que “a repressão contra a esquerda da Colômbia e a magnitude de suas perdas não têm paralelo na história latino-americana moderna”, o que não é nada pouco. A isso podemos acrescentar a matança de camponeses, líderes sindicais e incontáveis outros. Em 1986, um partido político independente foi autorizado a existir, mas o terror estatal praticamente o destruiu ao assassinar milhares de militantes importantes, inclusive candidatos à presidência, prefeitos, etc. Há poucos dias, recebi um recado de um advogado americano que trabalha informando-me que teria de fugir do país porque havia testemunhado o assassinato de um militante dos direitos humanos, cometidos por um matador paramilitar, e que, assim, sua própria vida estado em perigo – o que é o desenrolar normal dos acontecimentos no campeão de violações dos direitos humanos no hemisfério.
A Colômbia também foi líder hemisférica em matéria de ajuda e treinamento militar americanos. Nesse caso, o pretexto é a “guerra da droga”, mas isso é “um mito”, como informam regularmente as organizações de direitos humanos e outros investigadores que estudaram os laços estreitos que existem entre narcotraficantes, latifundiários, militares e paramilitares, responsáveis pela maior parte do terror. Essa história nos ensina mais uma lição sobre o verdadeiro significado do termo “democracia”.
Aprendemos ainda mais com os acontecimentos de anos anteriores, sobre os quais dispomos de parte dos registros secretos, de forma que sabemos bastante a respeito do pensamento que orientou a política. A reação americana à primeira experiência da Guatemala com a democracia é um exemplo revelador. Em 1952, a CIA alertou que as “políticas radicais e nacionalistas” do governo haviam conquistado “o apoio ou aquiescência de quase todos os guatemaltecos”. O governo estava “mobilizando o campesinato, até agora politicamente inerte”, e criando um “apoio de massa para o atual regime” por meio de organização dos trabalhadores, reforma agrária e outras políticas “identificadas com a revolução de 1944”, que suscitara “um forte movimento nacional para libertar a Guatemala da ditadura militar, do atraso social e do ‘colonialismo econômico’ predominantes no passado”. As políticas do governo democrático “inspiravam lealdade e correspondiam aos interesses da maioria dos guatemaltecos conscientes”. O serviço de informações do Departamento de Estado relatou que a liderança democrática “insistia em manter um sistema político aberto”, permitindo, assim, que os comunistas “ampliassem suas atividades e atraíssem vários setores da população”. Essas deficiências da democracia foram curadas pelo golpe militar de 1954 e o reino de terror desde então instalado, sempre com vasto apoio dos EUA.
A ameaça à ordem na Guatemala foi além da implantação de um sistema político aberto. Um funcionário do Departamento de Estado avisou que a Guatemala “tornou-se uma ameaça crescente à estabilidade de Honduras e El Salvador. Sua reforma agrária é uma poderosa arma de propaganda; seu amplo programa social de ajuda aos trabalhadores e camponeses em uma luta vitoriosa contra as classes abastadas e as grandes empresas estrangeiras exerce forte atração sobre as populações centro-americanas vizinhas onde as condições são semelhantes”. “Estabilidade” significa segurança para “as classes abastadas e as grandes empresas estrangeiras”, cujo bem-estar dever ser preservado. Na terminologia dos planejadores de alto nível, a Guatemala tornara-se um “vírus” que podia “infectar” outros países, pois enviava mensagens erradas a respeito da possibilidade de mudança social democrática. Houve muitos outros. Henry Kissinger advertiu que o governo de Allende era um vírus que podia espalhar a infecção até a Itália, ainda não “estável” depois de 25 anos de grandes programas da CIA destinados a subverter a democracia italiana. Os vírus têm de ser destruídos e os outros, protegidos da infecção: a violência muitas vezes é o meio mais eficiente de executar ambas as tarefas, deixando um rastro medonho de assassinato, terror, tortura e devastação.
O TLC (em inglês NAFTA) revela-nos algo mais dessa realidade. Não é mais possível fazer previsões otimistas no que diz respeito aos benefícios desse acordo, de forma que seus defensores agora concedem tranqüilamente que o “desígnio subjacente ao TCL não era promover o comércio, mas consolidar as reformas econômicas do México”. Seu objetivo era de “fixar o México” nas “reformas” que haviam feito do país um “milagre econômico” – para investidores americanos e ricos mexicanos, enquanto a população afundava na miséria. “Fixando o México” nessas reformas, esperava-se conjurar o perigo detectado por um seminário de Desenvolvimento Estratégico da América Latina, realizado em Washington em setembro de 1990: que “uma abertura democrática no México poderia testar a relação especial, elegendo um governo mais interessado em questionar os EUA nos campos econômicos e nacionalistas”.
A ameaça é a democracia, que só é permissível se produzir o resultado certo. Os resultados certos e errados são facilmente discerníveis na história e traçados com clareza em documentos secretos de planejamento. Esses documentos afirmam que a primeira ameaça aos interesses dos EUA são os “regimes radicais e nacionalistas” sensíveis às pressões populares pela “melhora imediata dos baixos padrões de vida das massas” e pelo desenvolvimento voltado para as necessidades internas do país. Essas tendências estão em conflito com a necessidade de “um clima político e econômico propício ao investimento privado”, com remessas de lucros adequada e “proteção de nossas matérias primas” – nossas, mesmo se localizadas em algum outro lugar. Por essas razões, o influente planejador George Kennan aconselhou, em 1984, que “devemos deixar de falar sobre objetivos vagos e irreais, como direitos humanos, elevação dos padrões de vida e democratização”, e precisamos “lidar de maneira direta com conceitos de poder”, não “obstaculizados por slogans idealistas” sobre “altruísmo e benefícios do mundo”- embora esses slogans sejam ótimos, e inclusive obrigatórios, no discurso público.
Para a América Latina, as questões foram esclarecidas em uma conferência hemisférica realizada em fevereiro de 1945, durante a qual Washington propôs uma “Carta Econômica para as Américas” que eliminasse o nacionalismo econômico “em todas as suas formas”. Os planejadores esperavam encontrar resistência. Documentos internos avisavam que os latino-americanos preferem “políticas destinadas a realizar a distribuição mais ampla da riqueza e a elevar o padrão de vida das massas” e estão “convencidos de que os primeiros beneficiários do desenvolvimento dos recursos de um país dever ser as pessoas desse país”. Esses erros são vulgares: “os primeiros beneficiários” dos recursos de um país são os investidores americanos, enquanto a América Latina desempenha sua função de serviço, sem preocupações improcedentes com o bem-estar geral ou o “desenvolvimento industrial excessivo” que pode contrariar interesses americanos.
A posição dos EUA prevaleceu, embora os problemas tenham continuado a surgir, e a serem tratados por meios que não preciso analisar. A coerência é notável, assim como a incapacidade de percebê-la.
Vejamos o importante exemplo do Brasil, o “Colosso do Sul”. As relações Brasil -EUA são estudadas em um livro muito elogiado sobre “The Americanization of Brazil”, de autoria de Gerald Haines que, além de historiador da diplomacia, também é o decano da divisão de história da CIA. O processo de “americanização do Brasil” começou em 1945, escreve Haines, quando “devido a seu próprio interesse, os Estados Unidos assumiram a responsabilidade pelo bem-estar do sistema capitalista mundial”. O Brasil é apenas um caso especial.
Haines descreve a maneira como Washington usou o Brasil como “campo de provas para métodos científicos modernos de desenvolvimento industrial”. O experimento foi realizado como “a melhor das intenções”. Os investidores americanos beneficiaram-se, mas os planejadores “acreditavam sinceramente” que o povo do Brasil também se beneficiaria. “As políticas dos EUA para o Brasil” foram “imensamente bem sucedidas”, escreveu Haines em 1989, “uma verdadeira história americana de sucesso”. Durante o governo militar, o Brasil tornara-se “o país latino-americano preferido da comunidade internacional de negócios”, como dizia a imprensa do ramo, enquanto o Banco Mundial informava que 2/3 da população não dispunham de alimentos suficientes para desenvolver uma atividade física normal. Segundo o mundo dos negócios, 1989 foi “o ano de ouro”, gerando lucros três vezes superiores aos de 1988, ao passo que os salários industriais, já entre os mais baixos do mundo, caíram mais de 20%. O Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano colocou o Brasil próximo à Albânia. Não é pouco para um país há muito reconhecido como um dos potencialmente mais ricos do mundo, com enormes vantagens, inclusive anos de tutela americana cheia de boas intenções, em que os EUA apenas cuidavam de seus próprios interesses enquanto deixavam a maiores da população na miséria.
Uma vez mais, os detalhes são ilustrativos. Em visita de 1960, o presidente Eisenhower assegurou aos brasileiros que “nossos sistema de empresa privada com consciência social beneficia a todos, tanto a seus donos como aos trabalhadores... Na liberdade, o trabalhador brasileiro está demonstrando alegremente a felicidade da vida em um sistema democrático”. Seu embaixador acrescentou que a influência americana havia “demolido a antiga ordem”, introduzindo “idéias revolucionárias como educação gratuita obrigatória, igualdade perante a lei, uma sociedade relativamente sem classes, um sistema de governo democrático e responsável, a livre empresa competitiva [e] um fabuloso padrão de vida para as massas”.
Mas os brasileiros reagiram asperamente às boas notícias trazidas por seus tutores do norte. As elites latino-americanas são “como crianças”, informou o secretário de Estado John Foster Dulles ao Conselho de Segurança Nacional, “não têm praticamente nenhuma capacidade de governar a si mesma”. Ainda pior, os EUA estão “desesperadamente atrasados em relação aos soviéticos no que diz respeito ao controle de mentes e emoções das pessoas não sofisticadas”. Dulles e Eisenhower sua preocupação com o talento dos comunistas para “assumir o controle dos movimentos de massa”, algo que “não temos a capacidade de reproduzir”. “Apelam para os pobres, que sempre quiseram saquear os ricos.” Achamos difícil induzir as pessoas a aceitarem nossa doutrina, segundo o qual os ricos devem saquear os pobres.
O governo Kennedy enfrentou o problema mudando a missão dos militares latino-americanos da “defesa hemisférica” para a “segurança interna”, decisão que teve conseqüências fatídicas, a começar pelo golpe militar do Brasil de 1964. Washington via os militares como uma “ilha de sanidade”. O golpe foi bem recebido pelo embaixador de Kennedy, Lincoln Gordon, que o considerou como uma “rebelião democrática”, a “mais decisiva vitória da liberdade em meados do século vinte” e “um dos maiores pontos de inflexão da história mundial”. Ex-comunista da Universidade de Harvard, Gordon acrescentou que a vitória devia “criar um clima muito melhor para os investimentos privados”, esclarecendo ainda mais o significado dos termos “liberdade” e “democracia”.
Dois anos depois, o Ministro da Defesa Robert McNamara informou a seus colegas que “as políticas dos EUA em relação aos militares latino-americanos haviam conseguido atingir [seus] objetivos”. “Sua capacidade interna de segurança” aumentara e estabelecera-se uma “influência militar americana predominante”. Graças aos programas de ajuda e treinamento do governo Kennedy, os militares latino-americanos entendem sua missão e estão equipados para cumpri-la. Uma de suas tarefas é derrubar governos civis “sempre que, no entender os militares, o comportamento desses líderes for prejudicial ao bem-estar da nação”. No contexto cultural latino-americano”, explicaram os intelectuais de Kennedy, é necessário que os militares exerçam essas intervenções. E podemos confiar em que desempenharão apropriadamente o seu papel, agora que os militares têm uma “compreensão dos objetivos dos EUA e estão orientados nesse sentido”. Assim, está assegurado um resultado adequado para a “luta revolucionária pelo poder entre os principais grupos que constituem a atual estrutura de classes” da América Latina, resultado que protegerá o “investimento privado americano” e seu comércio, “raiz econômica” que é a mais forte das raízes do “interesse político americano na América Latina”.
Uma vez mais, estou citando documentos secretos; neste caso, do liberalismo de Kennedy. O discurso público é diferente. Caso nos atenhamos a este último, pouco entenderemos sobre a vitória da democracia e da liberdade que conquista tantos aplausos.
Voltemo-nos para nossa própria terra: os Estados Unidos. Trata-se, certamente, do caso mais importante a ser estudado para entender o mundo de hoje e de amanhã. Uma das razões disso é seu poder incomparável. Suas instituições democráticas estáveis constituem outra razão. Além disso, os Estados Unidos foram o mais próximo a uma tabula rasa que se pode encontrar. “Terá a felicidade que quiser”, observou Thomas Paine em 1776: “tem uma folha em branco na qual escrever.” As sociedades indígenas foram amplamente eliminadas. Pouco resta das primeiras estruturas européias, o que constitui uma das razões da relativa debilidade do contrato social e dos sistemas de proteção, que muitas vezes tinham suas raízes em instituições pré - capitalistas. Em uma proporção rara, a ordem sócio - política foi conscientemente projetada. O estudo da história não pode construir experimentos, mas os EUA são o que podemos encontrar de mais próximo ao “caso ideal” de democracia capitalista de Estado.
Além disso, seu principal artífice, James Madison, foi um pensador político astuto. Nos debates que precederam a redação da Constituição, Madison apontou que, se as eleições da Inglaterra “fossem abertas a todas as classes de pessoas, a propriedade da terra seria insegura. Logo haveria uma lei agrária” que daria terra aos sem-terra. O sistema constitucional deve ser traçado de maneira a evitar essa injustiça e a “assegurar os interesses permanentes do país”, que são os direitos de propriedade. A responsabilidade básica do governo, declarou Madison, é “proteger a minoria de opulentos contra a maioria”- em termos modernos, evitar que os pobres saqueiem os ricos”.
No intuito de garantir que o governo cumpriria sua responsabilidade básica, Madison ideou uma série de limitações ao regime democrático. Previu que a ameaça à democracia se agravaria com o tempo por causa do aumento da “proporção daquelas que labutarão em condições difíceis e almejarão secretamente uma distribuição mais igualitária dos benefícios da vida”. Em uma sociedade democrática, podem chegar a ter voz demais, temeu Madison. O direito de voto dever dar o “poder à propriedade, sem compartilhá-lo”. “Não se pode esperar”, explicou Madison, que as pessoas “sem propriedade, nem esperança para adquiri-la, simpatizem suficientemente com esse direito”. Para vencer o “perigo futuro” de um “espírito nivelador”, Madison criou um sistema no qual a arena política estaria efetivamente nas mãos do que “provêm da riqueza da nação e a representam”, do “conjunto de homens mais competentes”, conforme sua expressão , e o público em geral permaneceria fragmentado e desorganizado. O princípio norteador foi declarado com simplicidade pelo colega de Madison, John jay, presidente do Congresso Continental e primeiro presidente da suprema corte: “os que possuem o país devem governá-lo”.
Restava uma pergunta crucial: quem possui o país? De acordo com o pensamento pré - capitalista de Madison, seus donos legítimos eram os proprietários de terras. O crescimento das empresas privadas no século XIX, bem como as estruturas legais criadas para protegê-las e apoiá-las, deram uma resposta diferente à pergunta, conduzindo ao poder as “instituições bancárias e empresas capitalistas” que, se fossem autorizadas a prosperar, alertou Thomas Jefferson, destruiriam a democracia.
Outro problema, que nunca foi inteiramente resolvido, é o de obrigar o público a aceitar seu papel subordinado. No exterior, a tarefa pode, se necessário, ser realizada por meio de violência e do terror, mas dentro dos EUA isso não é tão fácil, pois as forças populares conquistaram direitos significativos. Assim, foi necessário procurar outros meios para proteger a minoria dos opulentos contra a maioria: recorreu-se ao que destacados pensadores políticos do século XX chamam de “fabricação do consentimento” ou “engenharia do consentimento”.
A principal figura da indústria moderna das Relações Pública, Edward Bernays, esclarece o conceito em seu livro “Propaganda”. Explica que “a manipulação consciente e inteligente dos hábitos e opiniões realizadas das massas é um elemento importante na sociedade democrática”. Para realizar essa tarefa essencial, “as minorias sistemáticas”, porque só elas “entendem os processos mentais e padrões sociais das massas” e podem “puxar as cordinhas que controlam a mente do povo”. A propaganda permite que os líderes “moldam a mente das massas” de tal forma que as levem a “aplicar suas novas forças na direção desejada”. O problema suscitado pelo direito de voto mais amplo é superado, pois os líderes podem “arregimenta seus batalhões de soldados”. Esses processo de “engenharia do consentimento” é a própria “essência dos processos democráticos”, escreveu Bernays pouco antes de ser homenageado por suas contribuições pela Associação Americana de Psicologia em 1949.
Com bom liberal do New Deal, Bernay desenvolvera seus talentos no Comitê de Informação Pública de Woodrow Wilson, primeira agência de propaganda estatal dos EUA. “O que abriu os olhos do pequeno grupo de pessoas inteligentes para a possibilidade de arregimentar a mente do público foi o sucesso estrondoso da propaganda durante a guerra”, explicou Bernays. O pequeno grupo de pessoas inteligentes talvez não tenham percebido que o seu “sucesso estrondoso” baseou-se em atrocidades bárbaras fabricadas pela propaganda e a ele fornecidas pelo Ministério da Informação Britânico, que definia secretamente sua missão como sendo a de “dirigir o pensamento da maior parte do mundo”.
Tudo isso é pura doutrina de Wilson, conhecida na teoria política como “idealismo wilsoniano”. Pessoalmente, Wilson acreditava que era preciso de uma elite de cavalheiros como “ideais elevados” para preservar a “estabilidade e a probidade”. É a minoria inteligente de “homens responsáveis” que deve controlar a tomada de decisões, explicou Walter Lippmann, também ex - integrante do Comitê de propaganda de Wilson e, além disso, destacado intelectual progressista e influente comentarista de assuntos públicos por meio século. A minoria inteligente é responsável pela elaboração de políticas, continua Lippamnn, e pela “formação de uma saudável opinião pública” através da “manufatura do consentimento”. Essa “classe especializada” não deve sofrer interferência do público em geral, composto de “leigos ignorantes e intrometidos”. O público dever “ser colocado em seu lugar”, acrescenta Lippmann: sua “função” é de “espectadores da ação”, não de participantes, salvo quando as escolhas periódicas entre pessoas da classe especializada, denominadas “eleições”. De acordo com a atual terminologia do Banco Mundial, os líderes dever ter a liberdade de operar em “isolamento tecnocrático”.
Na ENCYCLOPEDIA OF THE SOCIAL SCIENCES, Harold Lasswell, um dos fundadores da moderna ciência política, assinalou que o pequeno grupo de inteligentes deve reconhecer a “ignorância e a estupidez das massas” e não sucumbir a “dogmatismo democráticos segundo os quais os homens são os melhores juizes de seus próprios interesses”. Não são; os melhores juizes somos nós. As massas dever ser controladas para seu recorrer à força, os administradores do social devem adotar “uma técnica totalmente nova de controle, exercido sobretudo por meio da propaganda”.
Observe-se que tudo isso é pura doutrina leninista; a semelhança entre a teoria democrática progressista e o marxismo-leninismo é impressionante, algo que Bakunin já previra muito tempo antes.
Esses temas encontram ressonância na atualidade. Por exemplo, na explicação dada pelo professor de Ciência do Governo, de Harvard, no início da era Reagan, segundo o qual “você deve argumentar a favor da intervenção, ou de outra ação militar, de modo a criar a falsa impressão de que é a União Soviética que você está combatendo. É o que os Estados Unidos têm feito desde a Doutrina Truman.” Outra lição da Ciência do Governo, continua o mesmo intelectual, é que “os arquitetos do poder devem criar uma força que possa ser sentida, mas não vista. O poder permanecerá forte enquanto permanecer na sombra; exposto à luz do sol, começará a evaporar.” O povo não só deve ser enganado a respeito das políticas, como também não deve ver quem as elabora. Essas tarefas exigentes são de responsabilidade dos intelectuais.
As relações trabalhistas dos Estados Unidos têm uma história incomumente violenta, mas os líderes empresariais acabaram entendendo que a violência não bastaria. O setor de Relações Públicas é um produto dessa compreensão. Desde sua origem, dedica-se ao “controle da mente do público”, conforme a descrição dos líderes empresariais. Os profissionais da área alertaram para o “perigo que os industriais estavam correndo” devido “ao recém percebido poder político das massas” e para a necessidade de combater e vencer “a eterna batalha pelas mentes dos homens” e de “doutrinar os cidadãos com a história capitalista” até que “sejam capazes de repeti-la com notável fidelidade”. Vultosíssimos recursos foram canalizados para a cooperação de escolas, universidades, meios de comunicação, indústria do lazer, publicidade e todos os outros meios imagináveis para a causa da proteção da minoria dos opulentos contra a praga da democracia, um dos temas centrais da história moderna.
Voltemos à doutrina dominante de que a “vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria” foi uma vitória da democracia e do livre mercado. No que diz respeito à democracia, essa doutrina é em parte verdadeira, embora tenhamos de entender o que se entende por “democracia”: controle de cima para baixo para proteger a minoria de opulentos, conseguido pela violência ou por outros meios. E o livre mercado? Aqui também achamos que essa doutrina está muito distante da realidade.
Já me referi ao TLC, acordo que, espera-se, protegerá os investidores do perigo de uma “abertura democrática” no México. O TCL também nos diz algo a respeito dos princípios econômicos que saíram vencedores. Não é um “tratado de livre comércio”. É, antes, extremamente protecionista, criado para barrar os concorrentes do leste da Ásia e da Europa. Além disso, metade das “exportações” americanas para o México nem entram no mercado mexicano. Trata-se de transferências de uma divisão a outra de uma empresa americana que atravessam fronteira para usar a mão-de-obra barata e evitar a legislação ambiental e outras, voltando depois aos EUA como “importações”, mas sempre controladas pela mão altamente visível da gerência central. Cerca de metade do “comércio” americano no mundo todo consiste em transações dentro de instituições sob controle central, totalitárias em sua estrutura interna, e em grande medida, isentas de influência do público. O caso do Japão e de outras potências industriais é praticamente idêntico. Alguns economistas internacionais descrevem o sistema mundial como um “mercantilismo corporativo”, muito distante do ideal de livre comércio.
A própria estrutura básica da economia viola radicalmente os princípios neoliberais. A obra de referência em história empresarial é o livro THE VISIBLE HAND, de Alfred Chandle