/O Calote dos EUA e a Alca

Data: 
16/04/2001
Autor: 
*Luiz Pinguelli Rosa

A posição tomada pelo presidente Bush de negar-se a cumprir o Protocolo de Quioto, de reduzir as emissões atmosféricas norte-americanas de gases de efeito estufa que contribuem para o aumento da temperatura global do Planeta, provocou uma reação séria de vários países. O Brasil também se manifestou criticamente com respeito à posição norte-americana. Para se entender do que se trata: na Conferência Rio 92 foi acertada a Convenção do Clima das Nações Unidas, assinada por cerca de 150 países, pelo qual os países desenvolvidos e os ex-socialistas, grandes consumidores de combustíveis per capita, se comprometeram a reduzir suas emissões de dióxido de carbono no ano 2000 ao nível que emitiam em 1990. Os países ex-socialistas cumpriram esta meta, até porque sofreram um colapso econômico. Os países desenvolvidos em seu conjunto aumentaram as emissões. O aumento das emissões dos EUA foi mais de três vezes a emissão total da América Latina. Em 1997, quando já se via que não seria cumprida a meta da Convenção do Clima, foi deliberado o Protocolo de Quioto, adiando os compromissos de redução para o período de 2008 a 2012 e diferenciando as metas por país.

O Itamarati, assessorado por cientistas e técnicos, através de uma Coordenação de Mudanças Climáticas criada no Ministério de Ciência e Tecnologia, levou a Quioto a chamada Proposta Brasileira. Por ela seria criado um Fundo de Desenvolvimento Limpo, constituído com recursos provenientes de multas aplicadas aos países que não cumprissem suas obrigações de reduzir emissões, calculadas com base na contribuição de cada país pelo aumento da temperatura da Terra. Não foi aprovado o Fundo, mas sim um Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. O Fundo era objetivo, enquanto o Mecanismo é vago, estando até hoje em fase de regulamentação. Com a decisão dos EUA cairá por terra o Protocolo de Quioto, dependendo da reação da União Européia, do Japão e de outros países, entre eles o Brasil.

Este problema merece uma maior atenção da sociedade brasileira. As mudanças climáticas poderão trazer conseqüências graves para a população dentro de poucas décadas, incluindo a elevação do nível do mar, perdendo-se faixas litorâneas em alguns lugares. Para estimular esta discussão, foi criado em março deste ano na COPPE/UFRJ o Centro de Estudos Integrados de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente e participação da USP e de outras universidades e institutos de pesquisa. O Centro deverá dar suporte ao Fórum Nacional de Mudanças Climáticas, instituído pelo Presidente da República. Por outro lado, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) criou um grupo de trabalho que elaborou um relatório apresentado na última reunião da Convenção do Clima, em Haia, no fim de 2000.

O relatório da SBPC refuta a argumentação de Bush, de que países como China, Índia e Brasil tinham de assumir o compromisso de reduzir emissões como condição para os EUA ratificarem o Protocolo. Mostra que além de ter um consumo per capita de energia dez vezes menor que o dos EUA, o Brasil tem uma matriz energética limpa, pois usa muito a hidreletricidade e o álcool em automóveis. Alerta, por outro lado, para a tendência de aumento das emissões brasileiras de dióxido de carbono pelas termelétricas e pelo abandono dos carros a álcool, ambos decorrentes da desregulamentação do setor de energia. As maiores emissões, entretanto, vêm do desmatamento da Amazônia e da criação de gado. O primeiro tem de ser combatido. Já a criação de gado serve para alimento e não pode ser comparada com o uso intensivo de automóveis, restrito a uma camada da população.

No Rio de Janeiro foi criado o Programa Rio Desenvolvimento Limpo, pelo qual a Faperj, da Secretaria de Ciência e Tecnologia, instituiu o Instituto Virtual de Mudanças Globais IVIG. Este vem realizando estudos, envolvendo os Programas de Planejamento Energético, de Transportes, de Metalurgia e de Materiais, de Mecânica e o Laboratório Interdisciplinar de Meio Ambiente da COPPE, além da Escola de Química da UFRJ, da UFF e da UENF, voltados para energias alternativas, que evitem emissões de poluentes, como o uso de biodiesel em veículos, do lixo urbano para a geração de energia elétrica, o desenvolvimento de pilhas a combustível que no futuro substituirão motores de carros. O objetivo ultrapassa o estudo acadêmico, buscando desenvolver projetos com empresas. Já participam deles a Petrobras, o Mc Donald’s, o Grupo Peixoto de Castro, a Renault. Além disso, foram lançados pelo IVIG nos últimos meses dois livros: “Transportes e Mudanças Climáticas” e “Consumo de Energia e Aquecimento do Planeta”, fruto do trabalho conjunto de pesquisadores e professores.

Com a decisão de Bush, os EUA rompem seu compromisso original na Convenção do Clima, pois a decisão resultante da Conferência Rio 92 foi modificada em Quioto e uma vez que não se cumpra o Protocolo, a Convenção torna-se inócua. Em um seminário promovido pelo Instituto Virtual de Mudanças Globais, o embaixador argentino Raul Estrada, que presidiu a reunião de Quioto, comparou esta decisão com a possibilidade dos países latino-americanos não pagarem sua dívida externa. Afinal, os EUA negam-se a pagar sua dívida ambiental global assumida desde a Conferência Rio 92. Imaginem se o Brasil fizesse o mesmo com sua dívida externa?

Tudo isto reforça a preocupação sobre o Brasil entrar na Alca, sob hegemonia americana, que fatalmente torpedeará o Mercosul. Também aqui o Itamarati tem feito um jogo correto, infelizmente atropelado por setores da área econômica deslumbrados com o mercado norte-americano, sem medir as conseqüências e o risco de cair na situação da Argentina. A recente articulação com a Venezuela em torno do Mercosul mostra que há um espaço de liderança continental a ser ocupado pelo Brasil para barganhar com os EUA.

*Vice-Diretor da COPPE/UFRJ