/Os Dois Lados da Questão da Bolívia

Data: 
08/05/2006
Autor: 
*Luiz Pinguelli Rosa

Em meio à natural reação no Brasil à intempestiva nacionalização do petróleo e do gás na Bolívia, algumas declarações extremistas foram transmitidas pela imprensa, como a reivindicação de que o governo brasileiro retirasse seu embaixador em La paz ou a Petrobras se retirasse totalmente daquele país vizinho. Ora, seria esta a melhor maneira de agravar a crise, pior para ambos os lados. Não é de se esperar um recuo total da Bolívia, pois o ônus político interno seria enorme. Tudo indica ter sido preferível a prudência diplomática adotada pelos pronunciamentos oficiais do governo Lula, buscando abrir a porta da negociação para salvar os dedos perdendo os anéis.

Neste contexto, a reunião dos presidentes do Brasil, Argentina, Venezuela e Bolívia em Foz do Iguaçu tem um lado simbólico. A usina de Itaipu Bi-Nacional tem um modelo de gestão com participação meio a meio pelo Brasil e Paraguai, sem um controlador como ocorre nas grandes empresas privadas em geral. Dei este exemplo em entrevista a uma emissora de rádio sobre a nacionalização. Este modelo poderia ser ponto de partida para negociar com a Bolívia a associação entre Petrobras e YPFB, sem abrir mão de indenização pelas perdas e pela desapropriação das ações da estatal brasileira, bem como pela perda do controle dos empreendimentos.

Cabe aqui dividir o problema em dois. Um é o da Petrobras como empresa, ainda que de controle estatal, mas com ações em bolsa, inclusive fora do país. Outro, o mais importante, é o dos interesses brasileiros em garantir o abastecimento de gás natural a preços justos. Isto pouco tem a ver com as duas refinarias e postos de gasolina da Petrobras/BR em território boliviano. A aquisição destes ativos teve sua origem na privatização do setor energético na América Latina, que ocorreram também no Brasil, ao tempo do presidente Fernando Henrique, que, no entanto, preservou a Petrobras. Mas sob a liberalização da economia e a quebra do monopólio que exercia em nome da União, a Petrobras se expandiu fora do Brasil incluindo a Bolívia, comprando ativos. Este tipo de investimento estrangeiro transferiu a propriedade das refinarias, mas não expandiu necessariamente a produção nacional, tal como ocorreu na privatização do setor elétrico brasileiro. Não podemos, portanto, afirmar que aquilo que não foi bom para o Brasil seja bom para a Bolívia parodiando conhecida frase. Até aqui a questão é o interesse da Petrobras como empresa, ainda que afete de algum modo o governo brasileiro, especialmente por ser estatal.

Sua perda pode ser avaliada como a metade dos ativos já que a Petrobras pode ficar como sócia da YPFB. Esta perda, entre 1 e 2 bilhões de dólares, é pequena face ao porte da Petrobras, significando algo em tomo de 1 % a 2 %. Tanto é assim que o impacto no valor das ações não foi relevante.

É totalmente diversa a importância do problema quanto ao gás natural, em que os investimentos feitos pela Petrobras significaram aumento real da produção física e econômica dos campos de gás bolivianos, bem como construiu o gasoduto viabilizando sua exportação para o Brasil. E aqui a questão é diretamente de interesse brasileiro, pois metade do gás natural consumido no Brasil vem da Bolívia e em São Paulo este percentual atinge 75%.

As alternativas são a expansão da produção nacional, que pode crescer mas leva tempo; a importação de outro países, como o Peru e a Venezuela ou de fora do continente, usando seja o transporte de gás natural liquefeito por navios metaneiros, seja o novo gasoduto como o trans-sul-americano, Venezuela-Brasil-Argentina – de extensão comparável ao trans-siberiano que abastece a Europa.

A expansão da produção nacional de gás, especialmente a do campo de Mexilhão, se torna significativa após 2008 e por si só não abole a necessidade de importação do gás boliviano, que a Petrobras pretendia duplicar com novos investimentos naquele país. Aliás, o problema existia antes do problema boliviano, pois não há gás natural para as termelétricas existentes, se forem despachadas pelo ONS em caso de necessidade.

Finalizando, para a Bolívia a exportação de gás também é essencial, pois três quartos da sua produção vêm para cá, 15% vão para a Argentina e apenas 10% são para o seu mercado interno. Portanto, não há como interromper a exportação, seria uma perda enorme, da ordem de 18% do PIB boliviano. O nó da questão é o preço garantido por contrato no qual são previstos reajustes. Aí se concentrarão as negociações, pois o problema do preço do gás natural no mundo todo tenderá a ser puxado pela alta do preço do petróleo.

*Coordenador do Programa de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ

Artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 05/05/06