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/Giulio Massarani : “aprendiz de feiticeiro”
Quem entra no gabinete de estudo do professor Giulio Massarani, no Bloco G da COPPE, tem um grato encontro com a história. História recortada em gravuras e xilogravuras decoram seu ambiente de trabalho, feitas a maioria por sua filha Mariana, hoje com 39 anos, ex-cartunista do JB e atualmente ilustradora. Fotos sob vidro da mesa ou em pequenos porta retratos, revelam antigas cenas familiares de crianças ou adolecentes, acompanhados ou não por seus pais, com esmaecidos e saudosos contornos. Em meio a este perfil de fisionomias, outra história é recontada pela coleção silente de instrumentos de laboratório e pela eloqüente biblioteca que abriga livros e teses de quem freqüenta a COPPE desde a sua fundação. Ganhador do Prêmio COPPE de Mérito Acadêmico 2001, o professor Giulio Massarani possui uma história pessoal que em inúmeros períodos se confunde com a história do primeiro Centro de Pós-Graduação de Engenharia instalado no país: a COPPE.
A Escolha
“Tem muito pouca gente no mundo que seria apenas uma coisa na vida, e eu estou entre aqueles que poderiam ser uma porção de coisas”. A opção pela química, entretanto, guarda uma grata lembrança de uma “bela professora” chamada Verinha, quando Giulio Massarani freqüentava o Colégio Andrews, na praia do Flamengo, na década de 50. Prestou vestibular para engenharia Mecânica, na PUC, e para engenharia Química, na então Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Ainda no Andrews, conheceu aquela que viria a ser sua futura esposa. Passou em primeiro lugar para a UFRJ, ingressando na turma de 1956, estudando no campus da Praia Vermelha, em prédio onde funciona atualmente a escola de Música da UNIRIO.
Filho de judeus italianos, Massarani era o caçula dos três irmãos e veio com a família de Roma para o Rio de Janeiro com cerca de um ano e meio de idade. Seu pai era músico e crítico musical e sua mãe, do lar. Chegou em 1939, às vésperas da invasão da Polônia pelo exército alemão, que deflagraria a Segunda Grande Guerra. No Brasil, Getúlio Vargas fortalecia seu poder com a ditadura do Estado Novo. Assim que começou a trabalhar, Massarani recebeu oferta de uma multinacional para atuar na área de mecânica. Mas, graduado em Engenharia Química e Química Industrial, configurou-se a possibilidade de Mestrado. Segue para a Universidade de Houston, Texas, acolhendo a orientação do professor Alberto Luiz Coimbra, que remete para seu colega americano e ex-orientador de mestrado, Frank M. Tiller, os primeiros contingentes de alunos que participariam, mais tarde, como docentes, da instalação da pós-graduação da Universidade do Brasil (UB) e da PUC/RJ.
Nascimento e Afirmação
Em 1962, o Professor Athos da Silveira Ramos (que faleceu recentemente, aos 94 anos) cria o Instituto de Química da UB com o objetivo de reunir as cadeiras de química dispersas pelas diferentes faculdades da Universidade, incentivar a pesquisa e iniciar cursos regulares de pós-graduação. Já em março de 1963, deslancha a pós-graduação da Divisão de Engenharia Química do Instituto de Química, cujo Diretor é o professor Coimbra. A equipe docente, além do professor Coimbra, conta com Donald Katz, Nelson de Castro Faria, Louis Brand e com jovens mestres egressos de Houston, entre eles Giulio Massarani. “O curso tem financiamento escasso, difícil e picotado, oriundo do MEC, OEA, USAID e da indústria”, afirma o professor Massarani. No ano seguinte é defendida a primeira tese de mestrado da UB, por Nelson Trevisan, sob o título “Adsorção Física: Teoria e Modelo”, orientada pelo professor Augusto Zamith.
Testemunha ocular do nascimento da pós-graduação no país, o professor Massarani presencia a festa com cocadas pretas e brancas que comemorou a assinatura do primeiro FUNTEC, em 21 de dezembro de 1964, assinado pelo professor Coimbra e o então representante do BNDE, José Pelúcio Ferreira. Serão os recursos concedidos pelo BNDE, CAPES e CNPq, órgãos criados no segundo período da Era Vargas, no início dos anos 50, que constituirão, por uma década, a base de sustentação para o desenvolvimento da COPPE. Segundo levantamento realizado pelo próprio professor Massarani, em materiais que recontam a historia deste Centro de Pesquisa e Pós-Graduação, será em 1965 que a Comissão Executiva da Universidade do Brasil criará a COPPE, congregando a Engenharia Mecânica nascente e a Engenharia Química. Inicialmente, observa o professor, com um erro de tradução: Coordenação dos Programas de Pós-Graduados de Engenharia, depois, Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia. Hoje, merecidamente, COPPE: Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia.
O Recrutamento
A Coordenação do primeiro Programa de Engenharia, o de Química (PEQ), que deu origem a COPPE, coube ao jovem Massarani, que se considerava “ um aprendiz de feiticeiro”. Outras tantas atribuições se sobrepuseram, entre elas, o recrutamento de alunos para o recém instituído curso de Mestrado, em viagens de divulgação através do Brasil. “Viajei pelo país inteiro, pois onde houvesse uma universidade nós íamos difundir nossos cursos”, comenta o jovem feiticeiro. Em 1966 a COPPE cresce e chegam mais professores com prestígio internacional, seguindo-se, em 1967, a transferência da instituição para a Cidade Universitária, no Fundão. Como observa Massaranni, “ para desconforto dos arquitetos dá-se a ocupação do pilotis do andar térreo do Centro de Tecnologia pelos sem-laboratório. Começa a integração entre a graduação e a pós, contando com a participação de professores do quilate de Fernando Lobo Carneiro”.
A Reforma Universitária de 68 oficializa a pós-graduação no Brasil e Coimbra, nas palavras de Massarani, sonha acordado, pois Vitor Lenski, da Universidade de Moscou, a “ Engenharia Matemática ao vivo” freqüenta a COPPE, o que assegura por cinco anos uma cooperação acadêmica com os soviéticos, em pleno período de recrudescimento do regime militar no Brasil. Ainda em 1970, lembra o professor Massarani, os professores Coimbra e Acher Mossé montam a COPPETEC uma “ companhia de pesquisas, projetos e estudos tecnológicos que, utilizando de forma ordenada os recursos humanos e materiais da COPPE, seja capaz de participar no desenvolvimento de nossa indústria”. Hoje, Fundação, a COPPETEC garante uma interface indispensável entre a Universidade e as demandas por projetos e serviços tecnológicos da sociedade.
Sanduíche Oditrevn
Em 1971, o professor Massarani conclui seu doutorado na Universidade Paul Sabatier, Toulouse, realizando o que se poderia chamar de “sanduíche invertido”, posto que o trabalho experimental foi desenvolvido na COPPE e a defesa da tese se deu na universidade francesa. Um ano antes, em 27 de fevereiro, Alcibíades de Vasconcelos Filho defendera a primeira tese de doutorado na COPPE, tendo por orientador o professor Sidney Gomes dos Santos. Reconhecido pelos alunos e por seus colegas como um professor de extrema competência, Massarani não se deixa lisonjear por elogios e credita este êxito a uma lição oferecida por Coimbra: “prepare suas aulas com rigor, pois os alunos são a matéria- prima e o nosso produto final”. Ele também destaca a exigência do Coimbra de que, diante de cursos inéditos, é fundamental reescrever as aulas ao longo do próprio curso. Massarani acrescenta, ainda, a importância do professor dedicar-se em tempo integral à universidade e dispor de uma cultura geral grande, que ultrapasse as fronteiras da sua disciplina específica e chegue, quem sabe, ao Teatro Grego.
Pesquisas e Intercâmbios
Além de ministrar disciplinas no campo da Matemática, professor Massarani desenvolveu seus trabalhos de pesquisa na área dos Sistemas Particulados, ou seja, tudo o que envolvesse fluídos e partículas. Já em 1973, ele e o professor Affonso Telles inauguram o ENEMP( Encontro Nacional sobre Escoamento em Meios Porosos), evento que se tornaria uma referência para todos aqueles que trabalham com os chamados sistemas particulados, atualmente já com a característica de Congresso e em sua 29º versão. Isto favoreceu o intercâmbio com estrangeiros, que perceberam dispor de um ambiente relacionado com sistemas particulados excepcional, que não havia em lugar nenhum do mundo. “Do Bloco A ao H, observa o professor, havia diversos pesquisadores trabalhando com sistemas particulados- físicos, metalurgistas, engenheiros químicos, mecânicos - fortalecendo na COPPE uma vocação para atividades acadêmicas interdisciplinares. Explica o professor Massarani que Sistemas Particulados envolvem problemas como filtração, escoamento de água em solos, secagem de produtos agrícolas, na área da Agronomia, até a separação do óleo da água, em exploração de poços petrolíferos.
Ainda na década de 70, encontrava-se na COPPE o professor Fernando Concha, chileno que atuava na Metalurgia. “Tivemos grande amizade por ele e daí nasceu a integração com diversas universidades chilenas”. Com o fortalecimento dos cursos de pós-graduação, laços foram também se espalhando com diversas universidades no Brasil e no exterior. Ao longo dos últimos 40 anos, o professor Massarani orientou mais de 55 mestrados e mais de 18 doutorados. Muitos de seus alunos hoje atuam na direção de laboratórios e de cursos de engenharia química em universidades como Federal de São Carlos, Estadual de Maringá, Federal de Uberlândia e Federal Rural do Rio de Janeiro. Mais recentemente, quatro ex-alunos da COPPE vão abrir um novo Departamento de Engenharia Química no Espírito Santo, junto a Fundação São Joào Batista, que vai funcionar perto da maior fábrica do mundo de papel e celulose, a Aracruz Celulose, com ênfase em efluentes e petróleo.
Pioneirismo e Dedicação
É também com indisfarçável orgulho que Massarani enfatiza uma peculiar característica dos tempos de pioneirismo da COPPE: a capacidade de improvisar diante das dificuldades de instrumentalizar os laboratórios. “ Somos da escola do ferro velho. Sempre fazíamos com as nossas próprias mãos os equipamentos de laboratório. Claro que algum equipamento de medida tinha que ser comprado, entretanto essa é uma grande diferença dos caras que vêm da Inglaterra, do Primeiro Mundo, e já encontram tudo pronto”.
Até 1973, ano em que o professor Coimbra viu-se obrigado a sair da Direção da Instituição que ajudara a fundar, retornando como Coordenador do PEQ 10 anos após, a COPPE já reunia 10 dos 12 Programas que hoje compõem a instituição. Massarani, por sua vez, continua dedicado a arte de ensinar, publicando ao longo de seus 40 anos de magistério, mais de duas centenas de trabalhos técnicos e cerca de 20 livros e publicações didáticas. Atua, ainda em órgãos de apoio a pós-graduação e fomento à pesquisa, integrando o Conselho Deliberativo e o Comitê Assessor do CNPq e da CAPES por longos anos.
Ao olhar para trás, Massarani afirma que o balanço é positivo. “Acordo pelas manhãs sempre com disposição para trabalhar. Já podia me aposentar, mas não pretendo. Normalmente a aposentadoria vem por várias razões. Uma é quando a cabeça e as pernas não funcionam”. “A grande arte é saber o momento de se aposentadoria. Para mim, quando você não consegue mais entender seus colegas, a nova geração, chegou a hora. Quando sair, pretendo sair por inteiro e de vez, e não pela metade, pois considero, inclusive, esta meia saída eticamente muito duvidosa”. Para o futuro, projetos ousados, entre eles o desafio de descobrir, dentro do campo dos sistemas particulados, formas adequadas de exploração de poços petrolíferos usando meios horizontais de recuperação do óleo, e não apenas as habituais perfurações verticais.
Outros projetos, não menos ousados, é cultivar plantas na varanda de seu apartamento, no Flamengo, curtir com sua esposa os quatro filhos e o neto, na Mata Atlântica que circunda a casa de sua família, em Petrópolis. Afinal, para Massarani, projetos não são um problema, mas uma solução.
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Publicado em - 01/02/2012