Jornalistas e professores defendem equidade digital e mudanças nas relações de aprendizagem

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Data: 02/07/2020

Na avaliação do professor Marcos Cavalcanti, não é mais cabível discutir se haverá ensino remoto. “É uma absoluta necessidade”

Com a expansão das atividades de ensino à distância, uma necessidade imposta pelo prolongado distanciamento social em função da Covid-19, acendeu-se o alerta para o risco de aumentar ainda mais a exclusão social de parte do corpo discente das universidades públicas. Reunidos pelo Fórum Virtual da Coppe/UFRJ, os jornalistas Cora Rónai e Marcelo Tas, e os professores Marcos Cavalcanti (Coppe) e Silvio Meira (UFPE e FGV) defenderam mudanças nas relações de ensino e o uso dos recursos nos fundos setoriais para a promoção de uma política de equidade digital.

O debate foi realizado no último domingo, 28 de junho, e foi transmitido, ao vivo, na página da Coppe no Facebook e está disponível na página da instituição no YouTube. A oitava edição do Fórum Virtual “O Brasil após a pandemia”, teve o tema “Atividades Remotas e Digitalização – Aumento da Exclusão Social?”, e foi mediado pela vice-diretora da Coppe, professora Suzana Kahn.

O professor Marcos Cavalcanti, do Programa de Engenharia de Produção (PEP) da Coppe, abriu o debate embasando seu raciocínio em dados da PNAD (Programa Nacional por Amostragem de Domicílios) 2018. A pesquisa feita pelo IBGE apontou que o Brasil tinha, no ano da amostragem, oito milhões de estudantes matriculados no ensino superior. Deste total, 74% na rede privada e 26% nas universidades públicas. Além disso, 83% dos domicílios desses alunos tinham computador e 99% tem acesso a celular, com 98% declarando ter acesso à Internet., sendo 88% via banda larga.

“Não é isso o que a gente vê nos debates dos professores. O senso comum é que o ensino remoto irá aumentar a exclusão radicalmente. Quando vemos que a maioria tem acesso por computador ou celular. Claro que há problemas, sobretudo se discriminar por classe social. Mas, mesmo assim, os dados contrariam o senso comum. Uma pesquisa recente feita na Fiocruz, mostrou que, em Manguinhos, 85% das classes D e E têm acesso a internet e a acessam diariamente”, explicou Cavalcanti.

Na avaliação do professor do PEP, não é mais cabível discutir se haverá ensino remoto. “É uma absoluta necessidade. Vai ter que ter. O acesso está muito mais perto dos 100% do que o senso comum acredita, embora persistam desigualdades. Cabe ao poder público realizar parceria para viabilizar o acesso gratuito a conteúdo educacional em banda larga. Eu acredito que as empresas de telecomunicação vão topar fazer. É possível e viável”, avaliou.

“Exclusão é um dado da realidade. ‘Digital’ é apenas uma lente que expõe que somos um país muito desigual”, afirmou Marcelo Tas

Marcelo Tas corroborou os dados apresentados pelo professor Marcos Cavalcanti, mas destacou que a desigualdade social é brutal e piorará após a pandemia. “A exclusão não é digital. Exclusão é um dado da realidade. ‘Digital’ é apenas uma lente que expõe que somos um país muito desigual. Apesar disso, não tenho dúvida de que a tecnologia pode aproximar pessoas que estão excluídas”, refletiu o jornalista.

Embora tenha confirmado a credibilidade dos números da Pnad, o comunicador pediu cautela para analisa-los. “Dados e algoritmos também contém vieses. Entrevistei Marcelo Gleiser recentemente e aprendi com ele que Ciência também tem vieses, e que método científico existe justamente para retirar esses vieses”, alertou Tas.

Para Marcelo Tas, não se deve demonizar a Internet, que é uma ferramenta, por haver exclusão digital, mas, ao contrário, o país deve se preparar para a mudança de horizonte à frente que “é gigantesca”. “O que vai acontecer nos próximos cinco anos vai ser muito grande. Quem menosprezou a mudança até antes da pandemia, prepare-se. A leitura de dados já é mediada por Inteligência Artificial (IA). Até eleições foram influenciadas pela IA. Há a questão do impulsionamento de publicidade em sites altamente contaminados por fake news. A Unilever declarou que vai retirar toda publicidade do Facebook. Outras empresas farão o mesmo, e isso causou terremoto no mercado. O Zuckerberg que era o rei da cocada preta levou ao menos três tombos nos últimos anos”.

Há recursos para a equidade digital

O professor Sílvio Meira revelou que há recursos nos fundos setoriais para promover a almejada equidade digital

Para o professor Sílvio Meira, a pesquisa mais pertinente sobre o tema vem sendo conduzida pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CTIC.Br), a qual mostra que 70 milhões de brasileiros têm acesso precário a internet e 42 milhões nunca a acessaram. “Em 2020, mais da metade dos brasileiros acessava por conta pré-paga. 114 milhões. Esse limite não vale para aplicativos da classe Zuck (redes sociais), mas significa que há limite nos dados que podem ser usados, como streaming. Mais da metade (53%) das casas do país não tem banda larga. Sem isso, streaming é inviável, ou seja, ensino à distância inviável.

“Discutimos a universalização, mas é muito difícil universalizar qualquer coisa. Como exemplo, uma pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS), 92% da Europa têm acesso a água segura. Ou seja, 72 milhões (8%) não têm. Isso é muita coisa. Universalizar não é algo trivial. Não é uma questão de igualdade e sim de equidade. É empoderar pessoas diferentes com realidades diferentes”, ponderou o professor da UFPE.

Como lembra Silvio Meira, em 1995, foi criado um comitê gestor para a Internet, que, dentre outras atribuições, se voltou para a questão da equidade digital. “Hoje, 72% dos domicílios dos Distrito Federal têm banda larga, mas no Maranhão mais de 80% não contam com esse serviço. Mesmo que você esteja numa grande capital, dependendo de onde esteja, mesmo que tenha dinheiro não conseguirá contratar banda larga. Para resolver tais questões foram criados fundos de contribuição obrigatória das teles, o Fundo de Universalização das Telecomunicações (Fust) e o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), que reúnem 115 bilhões de reais”, destacou.

“Contabilizando todos os gastos, cerca de um trilhão de reais deverá ser gasto em função da pandemia. Não haveria recursos para criar equidade digital? Seria uma fração desse montante, e esse recurso já existe. Qual o problema de investir 50 bilhões de reais em equidade digital? Poderíamos começar com todos alunos da rede pública, fundamental, médio e superior. As porcentagens são cobradas sobre faturamento das teles e os recursos não são gastas. Porque não há política, nem estratégia”, criticou Meira, criador do projeto Porto Digital, no Recife.

Repensar as formas de aprender e ensinar

Para a jornalista Cora Rónai, a Internet deveria ser direito básico como água, luz, saneamento. “Todo político sério deveria brigar por isso”

Responsável pela primeira coluna de tecnologia em um grande jornal brasileiro, Cora Rónai relembrou que a tecnologia permitiu o acesso a uma ampla gama de conhecimentos, sem a necessidade do deslocamento físico e com um celular e acesso à Internet, os alunos têm à disposição catálogos de diversas bibliotecas públicas.

“Quando criança, eu tinha acesso a ótimas bibliotecas públicas, incluindo a Biblioteca Nacional, mas imagine uma criança no interior do país? Hoje, a tecnologia aboliu esse problema, mas resta a desigualdade no seu acesso. Além disso, precisamos ensinar as crianças a usar tecnologias, usar as redes. A sociedade mudou demais para usar o mesmo esquema de ensino de dois séculos, um sujeito na frente da sala falando. As crianças devem aprender a aprender. O aprendizado não se esgota em sala de aula”, avaliou a colunista do jornal “O Globo”.

Na opinião da jornalista, a Internet deveria ser direito básico como água, luz, saneamento. “Todo político sério deveria brigar por isso. As pessoas não deveriam correr atrás de Internet, e uma vez universalizada, a ideia deveria ser pulverizar a escola por outros espaços. Não limitar o ensino à sala de aula, e pensar porque não ter espaços de ensino nos quais crianças de idade diferentes possam aprender juntas”.

O professor Sílvio Meira concorda que o ensino remoto possa estender o presencial, em vez de substituí-lo. “A geração Z já faz isso. No Minecraft, League of Legends, Twitch (os dois primeiros são jogos e o terceiro, uma plataforma de streaming para jogos). Entre os 3 e 15 anos de idade, as crianças inglesas jogam 6.200 horas. Um curso de Engenharia tem 4.200 horas. O que quero dizer é que as crianças jogam um curso e meio de Engenharia no ensino fundamental. No Ensino Médio, provavelmente farão o mesmo. Na faculdade, ouvem professor repetir slides de conteúdo que estão disponíveis no YouTube. Há disciplinas que são commodities. Por que precisamos de infinidades de professores repetindo os mesmos conteúdos dos mesmos livros para Administração 1?”, criticou.

“O conceito de universidade que ainda adotamos existe desde 859, quando Fatima al-Fihiri, uma refugiada, criou a universidade Al- Quaraouiyine, em Fez, no Marrocos. Já havia campus e já havia o conceito de Professor Titular. Precisamos pensar em como fazer para que o como faz para o campus seja ‘O lugar’ e não ‘um não lugar’. Será que o campus (ou escola) ainda é o lugar para aprender? Ou precisamos fazer um reboot”, questionou o professor Sílvio Meira, que recomendou para o tema a leitura do livro Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade, de Marc Augé.

Para Marcos Cavalcanti, o ensino remoto vai viabilizar a personalização da Educação. “Hoje a escola dá um ensino padrão. O professor olha a turma como se fossem todos iguais, e quem não aprende vai ficando para trás. Eu acredito que em vez de aumentar desigualdade, poderemos reduzir drasticamente desigualdades se os alunos puderem ter acesso a mais formas de aprendizado”.

“Além disso, o professor poderá saber em que nível cada aluno está, qual dificuldade de cada um, e terá condições de oferecer ajuda individualizada. Isso também permite ao aluno aprender de maneira individualizada. Nós, professores ‘PHDeuses’ temos que descer do pedestal e usar a tecnologia que nossos alunos já estão usando”, enfatizou o professor da Coppe.

Na opinião de Cavalcanti, o papel do professor não é “dar a faca e o queijo, é provocar a fome”. “O papel é deixar a pessoa curiosa, querendo aprender. Em vez de encher de informação, fazer pensar sobre a realidade. Nosso papel como provedor de informação acabou. Há vídeo muito mais interessante sobre Revolução Francesa do que um professor empilhando informação em uma sala. Talvez seja mais útil reunir e debater o que cada um leu sobre o tema, e inclusive apontar o que é fake no que é disseminado na Internet”, defendeu o coordenador do Centro de Referência em Inteligência Empresarial (Crie), laboratório da Coppe.

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