Pesquisa mostra que brasileiro valoriza mas não tem acesso à alimentação saudável
Planeta COPPE / Engenharia de Produção / Notícias
Data: 11/03/2021
“Sustentável pra quem?” Estudo realizado por pesquisadores da Coppe/UFRJ e da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (Facc/UFRJ) evidencia contradição entre discurso e prática nas classes médias brasileiras quando o tema é alimentação. A maioria dos entrevistados destacou o valor de alimentos naturais, orgânicos, menos industrializados, mas na prática, seja pela falta de tempo, custo, ou influenciados pela liderança de grandes marcas, acabam optando por alimentos processados das empresas líderes de mercado, ou pela comida pronta, comprada por meio de aplicativos. Ao todo, foram realizadas 61 entrevistas com consumidores de classe média do Rio de Janeiro e pessoas-chaves de instituições da área de alimentação no Brasil.
Financiado pelo conselho britânico de pesquisa (ESRC), o projeto “Sustainable Consumption, the middle classes and AgriFood Ethics in the Global South (SCArFEthics)” foi implementado no Brasil pela UFRJ, sob a coordenação dos professores Roberto Bartholo, da Coppe/UFRJ, e Rita Afonso, da FACC/UFRJ. Também participam do estudo as pesquisadoras Luiza Farnese Sarayed-Din e Cristine Carvalho, do Laboratório de Tecnologia, Diálogos e Sítios (LTDS) da Coppe.
Para discutir os resultados da pesquisa, as descobertas e contradições levantadas sobre o tema, a Coppe/UFRJ e a Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (Facc/UFRJ) promoveram, no dia 25 de fevereiro, o workshop “Sustentável pra quem? Olhar brasileiro para o consumo de alimentos”.
Durante o evento, foi praticamente consenso entre os debatedores que a sustentabilidade é um campo em disputa na política pública. “Comparando dez pés de alface com veneno (agrotóxico) e dez pés orgânicos, o orgânico é mais barato. O que acontece é que a gente compara dez pés de alface orgânicos com um milhão de agroindustriais. Se a gente tivesse a escala, o incentivo, o financiamento que a agroindústria tem, certamente chegaria mais barato à mesa do trabalhador”, afirmou Thomás Ferreira, da Cooperativa de Alimentos Saudáveis (Coopas).
Segundo Elisabetta Recine, integrante do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional, distorções como essa, são causadas pela ausência de uma política nacional de distribuição de alimentos e pela alocação de incentivos, sobretudo financeiros, no agronegócio em detrimento da agricultura familiar. A pesquisa mostrou que alimentação saudável, comida fresca ou menos industrializada não chega à mesa da maioria das classes médias brasileiras (em um entendimento mais amplo do que apenas a variável de renda, incluindo cultura e redes, e representando gênero, faixa etária, raça e diferentes formas de viver).
Sustentabilidade é um campo em disputa
“A alimentação saudável é percebida sob uma ótica de desigualdade social. A sensação é que você está vivendo uma espécie de apartheid alimentar, no qual a comida que você defende é a que chega na sua casa, não na minha”, citou Luiza Sarayed-Din, pesquisadora do Laboratório de Tecnologia, Diálogos e Sítios (LTDS) da Coppe e integrante da equipe que realizou o estudo, em referência à fala de um dos entrevistados.
Na opinião de Elisabetta Recine, as informações levantadas pelo estudo são provocadoras e suscitam muitas reflexões. “Sustentabilidade além de ser uma urgência, é um campo em disputa. As decisões e caminhos traçados por poucos, consequências para todos. Os sistemas alimentares hegemônicos, agroindustriais, são determinantes para a crise climática e também para várias iniquidades. Hoje, nossas três grandes crises – climática, fome e obesidade – são sinérgicas e se perpetuam. Precisamos de medidas que atuem de maneira sistêmica porque o problema é sistêmico. Para lidar com as muitas dimensões da insustentabilidade”.
“Sustentável virou um selo, uma marca, status. Mas, alimentação é mais do que comida ou remédio, ela é história da família, da comunidade, do país, da Humanidade. Ela é expressão de direitos, ou negação de direitos. Não há política nacional de abastecimento de alimentos que garanta acesso a todas as cidades de produtos frescos e a preço justo. O agronegócio chegou a esse volume de produção com um uso suicida de recursos naturais, mas também com muito recurso público. Se a agricultura familiar tivesse assistência técnica e financiamento, não conseguiria?”, questionou Elisabetta.
À frente do empreendimento social Saladorama, criado com objetivo de democratizar o acesso à alimentação saudável e de qualidade nas periferias, Hamilton Silva, que participou do workshop, explicou com sua história de vida as razões de atuar em prol da alimentação sustentável. “Eu venho de periferia, de São Gonçalo, e pra mim a melhor comida era aquela que eu não podia comer. Era o que eu comia quando saía o pagamento: sushi, hambúrguer. Um dia consegui um emprego e o almoço era servido na própria empresa. No meu primeiro dia, foi lasanha de berinjela. Coisa que não entrava no diálogo da favela como comida boa. Aí percebi que as pessoas ricas se preocupavam com alimentação saudável e essa discussão não chegava à favela. Queremos trazer esse debate para a dona Maria e o seu João, para as pessoas comuns, que elas podem ter alimentação saudável e orgânica, e que possam pagar por ela”.
SustentabilidadeS, justas e plurais
De acordo com a professora Rita Afonso, da FACC, uma das coordenadoras do estudo no Brasil, o objetivo da pesquisa era investigar agentes institucionais e culturais de mudança que vêm direcionando diferentes formas de consumo sustentável de alimentos nos contextos urbanos de crescimento das classes médias no Sul global (países em desenvolvimento, a periferia do sistema capitalista).
“Trabalhamos com dois conceitos: o de sustentabilidade justa, a necessidade de ter um piso mínimo de consumo que permita que cada cidadão viva com dignidade, e o teto máximo que garanta que o planeta renove seus recursos. Isso casa bem com a donut economy, de Kate Raworth, a necessidade de um espaço seguro e justo para a humanidade”, explicou Rita
Na avaliação do professor Roberto Bartholo, do Programa de Engenharia de Produção da Coppe, também coordenador do estudo no Brasil, “o uso e abuso da palavra sustentabilidade é tão grande que ela passou a significar quase tudo ou quase nada”. “Eu a entendo como a expressão de um compromisso com a afirmação da vida, em suas variadas formas. Como a memória das gerações passadas e os espaços de experiências e horizontes de expectativas das gerações futuras”.
Para Bartholo, “é importante não cairmos na armadilha do artigo definido e sua perigosa pretensão de universalização do particular. Quando um/uma querem se impor como sendo o/a. Por isso, é importante reconhecermos que podem existir e existem diversos modos de sustentabilidade e não apenas um que se imponha planetariamente a todos os povos e culturas como único, verdadeiro, bom, justo e belo. É importante que os modos de sustentabilidade sejam situados, ou seja, que sejam enraizados em contextos identitários que os configuram”.
Influências sobre as escolhas na alimentação
Segundo Luiza Sarayed-Din, na primeira fase do estudo foram entrevistadas 30 pessoas-chaves de instituições da área de alimentação sustentável no Brasil, sendo sete de órgãos de governo, cinco da sociedade civil, cinco de restaurantes, cinco de supermercados, quatro mídia/celebridades, quatro outros especialistas.
A pesquisadora explica que em suas respostas os entrevistados puseram maior foco na dimensão socioeconômica da sustentabilidade e evidenciaram as três ‘crenças institucionais’ brasileiras sobre a sustentabilidade: acesso (ter comida na mesa, conseguir comprar, saudável, comida de verdade, garantir sobrevivência), saúde (comida fresca, feita em casa, fitness e como remédio) e reconhecimento (comida de avó, comida como experiência, informação qualificada sobre a comida).
A segunda fase do estudo, apresentada no workshop pela pesquisadora Cristine Carvalho, também do LTDS, foram realizadas 31 entrevistas, de janeiro a agosto de 2019, com consumidores de classe média com idades entre 25 e 80 anos, brancos, pardos e pretos, solteiros e casados, autônomos e empregados formados, com diferentes faixas de renda. Nesta fase, os pesquisadores buscaram entender o que influencia o consumo de alimentos de maneira ética e sustentável.
Nesta etapa os pesquisadores mapearam os hábitos e tendências de consumo de alimentos, identificando os fatores que influenciam nas escolhas. Estilo de vida urbana, estrutura familiar, gênero, marcas, mídias sociais/celebridades, profissionais de saúde (nutricionistas, médicos).
“Constatamos que os entrevistados demonstram confiança nas grandes marcas de alimento. Escolhem iogurte de empresa multinacional por ser referência de indústria séria, vender produto de qualidade. Nem olha a embalagem ou o preço. Compra o frango congelado da empresa líder no segmento porque confia”, explicou Cristine.
De acordo com a pesquisadora da Coppe, há uma preferência por produtos transnacionais, pela busca por alimentos de qualidade em mercados especializados e a busca pela sensação, pelo prazer do paladar em um ambiente que seja calmo, além da procura por receitas saudáveis em canais e perfis no YouTube e Instagram.
“A composição do ambiente familiar é uma assinatura importante no processo de escolhas. Quem tem filhos se preocupa mais com alimentação saudável. Um entrevistado destacou: ‘acho que a preocupação maior é com ela (filha). Que ela coma frutas, alimentos orgânicos’. Outro entrevistado mostrou a influência da rotina de trabalho nas suas escolhas de alimentação. “Como tenho trabalho pesado, quando chego em casa não quero ver panela. Se não tenho comida em casa, peço no aplicativo. Como há opção variada de comida na região, peço nhoque, pizza ou hambúrguer. É muita junk food, exceto a massa’”, relatou Cristine
Demanda por alimentos saudáveis aumentou na pandemia
O workshop propiciou o compartilhamento de experiências de pessoas que trabalham, efetivamente, para tornar a alimentação mais sustentável no Brasil. Thomás Ferreira trouxe o testemunho pessoal da atuação da Cooperativa de Alimentos Saudáveis (Coopas). “Nós comercializávamos cerca de 50, 60 cestas mensais de alimentos e durante a pandemia chegamos a 500. Conseguimos competir com os sacolões da periferia de Belo Horizonte. Mas qual é o próximo passo? Vamos para o Ifood? O que significa em termos políticos e financeiros? É caro entrar nessas plataformas, a gente entra como supermercado. Temos que pagar para Ifood e para o intermediário”, ponderou.
Na avaliação de Márcio Mendonça, coordenador do programa de agricultura urbana da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, “a agricultura familiar, camponesa, é que põe comida na mesa. As grandes áreas destinadas ao cultivo de alimentos são de pequenos proprietários. Ainda que alguns tenham se tornado agronegocinhos”.
“Comer é um ato político. Queremos resolver a questão não apenas para uma parte da sociedade, mas para a maioria. Isso é uma questão de preço também, de tornar o alimento saudável mais acessível. Comparando dez pés de alface com veneno (agrotóxico) e dez pés orgânicos, o orgânico é mais barato… Se a gente tivesse a escala, o incentivo, o financiamento que a agroindústria tem, certamente chegaria mais barato à mesa do trabalhador”, ressaltou Thomás.
Luana Carvalho trouxe ao debate o ponto de vista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e contou a experiência do movimento com a venda de alimentos orgânicos na Lapa (RJ) com o Terra Crioula, e depois com a criação do Armazém do Campo, iniciativa também presente em Macaé, Campos e outros municípios fluminenses onde se encontram assentamentos rurais.
“Neste governo não há mais política de reforma agrária. O que está em curso é uma contrarreforma agrária. Precisamos desmistificar que MST só tem vândalo e invasor, e mostrar que por meio de nossa luta podemos colocar alimento saudável a preço acessível na mesa do trabalhador”, defendeu Luana.
A pesquisa realizada pela Coppe e pela Faculdade de Administração e Ciências Contábeis, ambas da UFRJ, contemplou 61 entrevistas com pessoas-chaves de instituições da área de alimentação sustentável no Brasil (Fase 1) e consumidores de classe média do Rio de Janeiro (Fase 2). Na primeira fase, foram entrevistadas 30 pessoas-chaves de instituições da área de alimentação no Brasil, tais como governo, sociedade civil, restaurantes, atacado/varejo e mídia/influenciadores. Na segunda fase, os pesquisadores entrevistaram 31 consumidores de três bairros do Rio de Janeiro (Tijuca, Botafogo e Maré). Também foi traçada uma etnografia de dez desses consumidores que consentiram em ser acompanhados com maior detalhe.
O workshop foi transmitido pelo YouTube e continua disponível na íntegra em: https://www.youtube.com/watch?v=jUYL04Tk06g&feature=youtu.be.