Especialistas apontam as dificuldades do Brasil para enfrentar a pandemia e defendem sistema amplo e política industrial para a Saúde

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Data: 22/04/2020

Constituir um Estado de bem-estar social que caiba no PIB, integrando sistema amplo de saúde, política industrial para o setor, e reconfiguração da política social do Brasil. Foi o que defenderam os especialistas Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da UFRJ, e Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, nesse domingo, 19 de abril, durante debate do Fórum Virtual “O Brasil após a pandemia”, promovido pela Coppe/UFRJ e transmitido na página da instituição no Facebook. O video está disponível no canal da Coppe no YouTube.

Médica sanitarista, Lígia Bahia abriu o debate enfatizando que a Covid-19 é um fenômeno biológico novo, e seu modo de transmissão está sendo objeto de grande discussão na comunidade cientifica. A pesquisadora destacou que o Brasil é um dos países em piores condições para enfrentar o coronavírus. “São vários ‘sem’: sem dinheiro, sem notificação, sem informação abrangente, sem recursos humanos suficientes, sem coordenação. Saímos do debate internacional por não termos política pública adequada para este enfrentamento. Não temos sequer testes em quantidade mínima razoável, e temos um presidente que insiste em tensão política”, criticou Lígia.

Na avaliação da professora da UFRJ, a dificuldade para lidar com a pandemia é agravada pela desigualdade social do Brasil, “com diversas aglomerações e subaglomerações: populações carcerárias, populações morando nas ruas e muitas pessoas em favelas onde o isolamento social não é possível”.

Incertezas na saúde e na economia

Segundo Ricardo Henriques, os analistas de mercado estimam que o PIB brasileiro sofrerá uma queda de ao menos 5%. “É uma crise muito pior que a de 2008, podemos passar de 12 milhões para 25 milhões de desempregados. Nem no processo de hiperinflação tivemos queda tão abrupta”, afirmou o economista, destacando que a pandemia trouxe consigo diversas incertezas.

“Cerca de 80% do setor produtivo é constituído por micro e pequenas empresas, que têm capital de giro de 15 dias. Como manter a economia produtiva com ela parada? Como vai ser a retomada dos sistemas de ensino? Um longo período de interrupção de aulas aumenta enormemente a evasão. Em muitos locais, a renda dos idosos sustenta a família. A letalidade maior dos idosos impacta na escolaridade dos jovens. Além disso, há impactos na saúde mental das pessoas que estão confinadas e inseguras quanto aos seus empregos e fontes de renda, e há o aumento da violência doméstica”, questionou o superintendente executivo do Instituto Unibanco.

Na opinião do ex-secretário da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação, a pandemia tende a aumentar a desigualdade e vulnerabilidade social, e a falta de experiência administrativa e de conhecimento técnico em política social no governo federal podem piorar o processo. “Onyx Lorenzoni ser ministro de desenvolvimento social seria uma piada em qualquer lugar do mundo. O Mandetta estava longe de ser um ministro desejável, mas a sua saída representa um desmonte do que vinha sendo feito”.

Segundo Lígia, o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, é um empresário muito bem sucedido, mas não conhece o SUS. “Alguém com esse perfil assumir em meio à pandemia é complicado. Com as declarações dele, estou perdendo as esperanças de que ele tenha autonomia. Suas falas têm sido confusas como pastel de vento. Parece ter vindo para enfraquecer o protagonismo do Ministério da Saúde”, criticou.

Para a professora Lígia, a falta de coordenação política e de competência administrativa no Rio de Janeiro são ainda piores do que em outros estados. “Aqui, no Rio de Janeiro, a situação é particularmente complicada, pois temos Bolsonaro, Witzel e Crivella ao mesmo tempo. É o que o escritor Raduan Nassar chamava de casa do capeta. Em São Paulo, Covas e Doria dialogam, tomam atitudes”.

Integração entre SUS e complexo industrial da saúde não saiu do papel

Lígia elogiou o Sistema Único de Saúde (SUS), mas lamentou que a integração com o complexo industrial da saúde, responsável pelo fornecimento de insumos, equipamentos e medicamentos, não tenha saído do papel. “O SUS foi concebido como sistema. Mas, a articulação com a indústria ficou para trás. Mesmo no debate público se fala em atenção básica, médico cubano, e não se fala mais na acoplagem à indústria”, ressaltou.

“Sistema de saúde não se limita a articular atenção básica com serviços de maior complexidade. Ele inclui a indústria que produz insumos para a saúde, fármacos, EPIs, equipamentos hospitalares. Só pode ser um sistema se tiver a indústria acoplada. Este é o exemplo do sistema de saúde inglês, o NHS, que é tão aclamado. Nele, a indústria cresceu junto com os serviços de saúde. Um aprimorou a evolução do outro”, complementou Lígia Bahia.

A professora comparou o modelo britânico com o norte-americano. “Os Estados Unidos gastam com 17% do seu PIB com saúde. O Reino Unido gasta 8% com resultados muito melhores. EUA têm hospitais que parecem hotéis luxuosos, mas a indústria cresceu à parte, não dialoga com a saúde pública. O resultado é o que estamos vendo nesta pandemia, os latinos e negros tiveram mais mortes do que os brancos nos EUA, caracterizando a imensa desigualdade de um país com medicina muito sofisticada, mas sem sistema de saúde”, criticou.

De acordo com Lígia, o Brasil tem tecnologia e competência acumulada, mas não tem escala industrial para produção em larga escala. “O Instituto Butantã e a Fiocruz foram subfinanciados. O país foi desindustrializado. O Brasil depende de parafuso importado para ventilador pulmonar, de reagente importado para testes. Nós estamos de joelhos para a China que produz máscaras, respiradores, testes, de qualidade duvidosa, diga-se. Preferir a todo custo importar o mais barato tira a soberania e a segurança sanitária do país”.

“Então, o que a gente tem que fazer?”, questionou a médica sanitarista. “O que a Inglaterra fez. Investir em indústria de medicamentos, equipamentos, química fina… Assim, os medicamentos caros ficam baratos e o sistema fica sustentável”, reforçou a professora, destacando que muitas ações importantes de combate à crise não têm surgido do governo, mas de iniciativas das universidades públicas, no exercício de suas autonomias. “O que a Coppe está fazendo de produzir ventiladores pulmonares é um ato heroico. Ainda mais em cenários de cortes e ameaças de cortes”.

Em meio à crise, uma agenda positiva

Na avaliação de Lígia Bahia, toda crise, por pior que seja, traz alguma consequência positiva. “Finalmente, saiu da agenda pública o corte de recursos e há uma nova valorização da Ciência. Há muito tempo estávamos presos em uma agenda fiscalista. Hoje seria muito difícil o Guedes vir à TV para dizer que vai cortar salário de profissional de saúde”, celebrou.

“Além disso, 99% dos médicos votaram no Bolsonaro. Ele não foi eleito só com voto de miliciano, ele teve voto de certa elite. E hoje ele perde apoio na classe médica. Os médicos estão contra a ideia de sair do isolamento e de usar, sem critério, a cloroquina. Há uma movimentação de placas tectônicas na sociedade brasileira”, analisou a professora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (IESC/UFRJ).

Segundo Ricardo Henriques, é preciso montar um arco amplo e novo que possa reconfigurar a política social para retomar a discussão. “Precisamos endereçar caminhos concretos para enfrentar os desafios urbanos, que são matriciais e multissetoriais, para sairmos dessa crise com nova visão de Estado de bem-estar social, capaz de visibilizar nossa desigualdade e racismo estrutural. Para fazer a economia crescer. Mas não no receituário delfiniano de fazer o bolo crescer, mas que não redistribui”, analisou o professor, um dos formuladores do Bolsa Família.

Vamos conseguir um projeto de sociedade em que a política social não fique subordinada à política econômica, mas em igualdade? O normal na política é essa subordinação (da política à economia), independentemente da visão doutrinária do governante. Precisamos de visão articulada, integral, para mudar o mindset de política pública. A Índia tem cinco centros equivalentes ao ITA e cada um adotou outros cinco centros. Uma decisão do governo para gerar tecnologia e visão internacionalista de ocupar até o mercado de engenheiros do Leste europeu. Não estou dizendo para ter subsídio para setor economicamente inviável. O Estado de bem-estar gera dinamismo para a economia, eles não são antagônicos.

Na opinião de Ricardo, ex-secretário-executivo do Ministério de Assistência e Promoção Social, há uma perversão associada à incompetência nas filas enormes para retirada do auxílio emergencial, que não foi operacionalizado de forma ágil, como deveria. “O cadastro poderia ser pivô da assistência social como um todo. O Bolsa Família é um programa de renda mínima, mas poderia ser convertido em renda básica. Podemos subir a barra e ter uma garantia de que ninguém fique em um patamar de pobreza extrema”, explicou o professor, para quem os pilares da ação social do governo deveriam ser coordenação e efetividade aliados a equidade e solidariedade. “A política social tem que ter o compromisso radical de ser eficaz e eficiente”.

Os quatro debates promovidos pela Coppe/UFRJ no Fórum Virtual “O Brasil após a pandemia” se encontram disponíveis na página da instituição no Facebook. Confira os temas e acesse a gravação dos debates nos links abaixo.

12/04 – Política, Ciência e Tecnologia

Denise Pires de Carvalho, reitora da UFRJ; ex-ministro Ciro Gomes; deputado federal Alessandro Molon.
https://www.facebook.com/coppe/videos/3500576453290741

15/04 – Indústria, Produção e Emprego

Márcio Pochmann, professor da Unicamp, e o economista Eduardo Moreira.
https://www.facebook.com/coppe/videos/639607736883507

19/04 – Saúde Pública, Cidades e Infraestrutura

Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC/UFRJ), e Ricardo Henriques, economista e superintendente executivo do Instituto Unibanco.
https://www.facebook.com/coppe/videos/549842012383731

22/04 – Internet e Ética

Glenn Greenwald, jornalista do The Intercept e Pedro Doria, colunista do jornal “O Globo” e cofundador do Canal Meio.
https://www.facebook.com/coppe/videos/694953804591894

Todos os debates foram mediados pelo professor da Coppe, Luiz Pinguelli Rosa. Saiba mais no Planeta Coppe Notícias

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