Sidarta Ribeiro abre o período letivo da Coppe com críticas ao desmonte do Estado e à guerra às drogas
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Data: 18/03/2020
O professor da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN), Sidarta Ribeiro, proferiu a Aula Inaugural da Coppe/UFRJ, na última sexta-feira, 13 de março. Pela primeira vez a Coppe promoveu este evento em conjunto com a tradicional Recepção aos Novos Alunos. Por conta da pandemia causada pelo coronavírus, Covid-19, a solenidade não foi aberta ao público, mas transmitida via Facebook. A cerimônia marcou o início do ano letivo de 2020, no qual a Coppe está recebendo cerca de 800 novos alunos.
Na abertura, o diretor da instituição, professor Romildo Toledo, ressaltou o papel da Engenharia e da Coppe. “Hoje a Engenharia dialoga com muitas áreas do conhecimento e cada vez mais está presente na vida das pessoas. Vocês estarão envolvidos em pesquisas que buscam soluções para temas globais e também locais, focados no desenvolvimento do país e no interesse da sociedade brasileira. E nós estamos aqui para servir a sociedade. Somos uma universidade pública e gratuita! Não podemos jamais esquecer desse compromisso que temos com quem nos mantém”, enfatizou o diretor da Coppe.
O evento contou com a presença da vice-diretora, professora Suzana Kahn; da diretora acadêmica, professora Lavínia Borges; da diretora de Tecnologia e Inovação, professora Angela Uller; do diretor-adjunto de Empreendedorismo, professor David Castello Branco; da diretora-adjunta de Gestão de Pessoas, Vanda Borges; e do assessor especial da diretoria, professor Luiz Pinguelli Rosa.
Qual o preço de não termos Ciência? Para responder a própria pergunta, Sidarta fez uma digressão histórica pela institucionalização da Ciência no Brasil, mostrando que mesmo em períodos economicamente difíceis, e até mesmo em tempos de democracia e liberdades civis cerceadas, houve avanços na constituição de um ambiente propício para a pesquisa.
“No início da institucionalização da Ciência no país, cientistas e militares estavam alinhados. O primeiro presidente do CNPq foi o almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, professor de química da Escola Naval, e membro da Academia Brasileira de Ciências. Uma contradição da ditadura militar: havia perseguição de intelectuais e, ao mesmo tempo, havia essa estruturação. Houve uma alavancagem econômica baseada em ciência e institucionalização poderosa, pois havia grande interesse dos setores militares em desenvolver o país. Desde Dom João VI, o Brasil passou por períodos de avanço institucional ou estagnação. O que é a novidade é o retrocesso, é andar para trás”, contextualizou o professor.
“Encerrada esta página infeliz da história brasileira”, a redemocratização, com a promulgação da Constituição Federal, garantiu, conforme explicou Sidarta, financiamento estatal para a Educação, Saúde, Ciência, Tecnologia. “Cria-se uma base jurídica no governo Fernando Henrique Cardoso para financiar educação básica e ensino médio no Brasil. Foram criados fundos setoriais para canalizar recursos privados e investi-los em pesquisa. Mas, apenas no governo Lula começou a haver um aporte grande de recursos para esses fundos. Precisamos entender que os avanços se dão em diferentes governos, com diferentes propostas, diferentes ideologias. FHC criou o arcabouço jurídico e Lula deu-lhe o financiamento que este arcabouço pedia”, ponderou Sidarta.
Na avaliação do professor da UFRN, a Ciência e Tecnologia experimentaram um período áureo entre 2003 e 2010. “Saímos de 2,5 bilhões de reais de orçamento para 10 bilhões no final do período, quando era ministro o grande físico Sérgio Rezende. Essas coisas não estão desacopladas, foi um período de excelência e estava à frente do ministério um cientista de excelência”, elogiou.
“O Titanic bateu no iceberg no início do governo Dilma. Mas, nosso sistema era tão robusto que demorou para o barco fazer água. Houve uma grande expansão do sistema, uma iniciativa meritória. Havia sensação de que havia recursos e houve um sobredimensionamento. Em seguida, o contingenciamento de recursos do FNDCT, que inicia com Dilma e se torna brutal com Temer. E com ele o fim do Ministério da Ciência, fundido ao Ministério das Comunicações. Achávamos que era o fundo do poço e veio o novo governo, que não tem interesse em desenvolver o país tecnologicamente a ainda ataca o setor”, ressaltou o neurocientista.
Qual o preço que teremos que pagar se não tivermos Ciência?
O ex-secretário da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento criticou a Emenda Constitucional 95, que implementou o teto de gastos para o governo federal. “Ela limitou o gasto público de maneira draconiana, incompatível com o desenvolvimento nacional. É preciso derrubar esta emenda. Todo país que se desenvolveu fez investimentos em ciência, obteve ganhos de produtividade e reinvestiu. É um círculo virtuoso”.
“Se você não sabe o que é o FNDCT, saiba. Esta semana ele quase foi extinto. Não foi graças a uma articulação tão ampla, que foi da Marinha ao PT. E isto ainda pode acontecer porque vai ao plenário. Vivemos um momento de autoabandono. Este é um governo que retira radares das estradas e as mortes aumentam. Precisamos aderir aos fatos, ter políticas públicas baseadas em evidências. Perder o bonde da história em momento de revolução tecnológica 4.0 é gravíssimo”, complementou Sidarta.
Segundo o professor, é falacioso dizer que retirar o investimento público abriria espaço para o investimento privado. “Eles não são antagônicos, eles são complementares. O País precisa do Estado e nós vemos isso em situações emergenciais. Quando o Brasil teve crise de zika e microcefalia, em seis meses a Fiocruz identificou a relação entre ambas. Recentemente, em 48h, duas pesquisadoras negras da USP, Ester Sabino e Jaqueline de Jesus, fizeram o sequenciamento do genoma do coronavírus. Para reagir a crises como essa, precisamos de know how, precisamos de um exército de cientistas”.
Como encontrar a motivação necessária para enfrentar as vicissitudes de tempos como estes? Na opinião do professor Sidarta Ribeiro, as pessoas têm que tirar energia da sabedoria ancestral e da arte popular. Há um maracatu de alta qualidade, e muita alegria, chamado Piaba de Ouro. Acho que ele simboliza o que precisamos. Se a gente tem medo que o Brasil vire um Titanic, lute como uma piaba de ouro”.
Aporafobia e a guerra às drogas: “a maconha está para o século XXI como o antibiótico esteve para o século XIX”.
O professor Sidarta Ribeiro chamou atenção para dois problemas sociais brasileiros que estão relacionados entre si e se retroalimentam. A aporafobia, manifestada na aversão que parte da sociedade brasileira demonstra em relação às camadas mais pobres da população, latrogenia, situação na qual o remédio prescrito causa um mal maior do que a doença que busca combater, no caso a comprovadamente ineficaz guerra às drogas.
Como exemplo, Sidarta citou a favela de Paraisópolis, em São Paulo, que foi palco de recente e grave violência policial, em que nove adolescentes morreram após uma operação em um baile funk. “Quiseram justificar que eram jovens desacompanhados de seus pais usando drogas em uma festa. Bem, essa me parece a descrição do Lollapalooza. Por acaso, a polícia vai ao Lollapalooza matar jovens de classe média alta? Não, ela vai lá para dar segurança. Essa diferença de tratamento é inaceitável e precisamos nos posicionar contra isso. Nossa segurança pública é latrogênica, ela gera mais insegurança. Precisamos ter consciência de que essa guerra aos pobres precisa parar”, enfatiza o professor.
Membro do Conselho Consultivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, Sidarta citou um artigo do pesquisador americano Joscha Legewie, o qual mostra o que acontece nos nove meses que seguem ao assassinato de jovens negros pela polícia, na porta de casa, em suas comunidades. “Ocorre uma redução no tempo de gestação e no peso dos recém-nascidos nessas localidades. Isso é muito grave. Isso mostra que não apenas a família da vítima sofre, toda a comunidade sofre. Estamos criando fábricas de sofrimento. Sofrimento transgeracional. Uma mãe estressada gera filhos estressados. Não podemos aceitar isso. Policiais truculentos devem ser removidos da força policial e não premiados”.
Na avaliação de Sidarta, o impacto social do proibicionismo é grave. “Não há droga que seja do demônio, nem que seja de Deus. Todas as substâncias podem ser veneno ou remédio, dependendo da dose. Isso a Ciência sabe há séculos. Mas a proibição é tóxica, ela mata inclusive quem não faz uso da substância”.
“Essa proibição deve acabar, essa foi a posição da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, há dois anos. Foi uma decisão unânime pela legalização e regulamentação de todas as drogas. A repressão gera uma escalada armamentista. A polícia compra helicóptero, o traficante compra uma bazuca. Não é uma bandeira da esquerda. Lech Walesa, Noam Chomsky, Fernando Henrique Cardoso, até a revista The Economist. Os verdadeiros liberais defendem isso há tempos”, reforçou o neurocientista.
Sem medo de confrontar o senso comum com a evidência científica, o professor Sidarta Ribeiro afirmou: “a maconha está para o século XXI como o antibiótico esteve para o século XIX. Quem for contra, vai ficar chupando dedo. Geriatria, oncologia, psiquiatria, neurologia, controle de dor. Para tudo isso, a maconha não vai ser o último remédio, vai ser o primeiro”.
Segundo o professor, que é membro da Membro da Academia de Ciências da América Latina (ACAL), isso já ocorre em Israel. “Os israelenses são líderes mundiais em pesquisas com canabinóides. Maconha é extremamente importante no tratamento de câncer e sabemos disso há 50 anos. A pessoa que passa por quimioterapia, radioterapia, perde apetite, perde vontade de dormir, fica ansiosa, tem dores, fica deprimida. Ela melhora o apetite, regula o sono, diminui ansiedade, diminui a dor e aumenta o prazer. As pessoas passam galhardamente por esses tratamentos quando têm a maconha medicinal. E em 2014 descobrimos que a maconha tem propriedades antitumorais, ela mesma”, explicou.
Sonhar para ampliar os horizontes da existência
Autor do livro “O oráculo da Noite: a história e a ciência do sonho”, Sidarta falou sobre dois tipos de sonho: aquele do desejo consciente, que guia a pessoa em seus objetivos de vida, e o outro que surge nos recônditos da mente, durante o sono profundo. O primeiro não pode ser conquistado sem esforço. Sem Kung Fu, que significa “trabalho árduo” em português. “Eu sempre digo ao meu filho. Escrever um bom trabalho de conclusão de curso, uma boa dissertação, uma boa tese, é fazer kung fu”.
No entanto, o kung fu (não a arte marcial, mas esse esforço pelos objetivos) é prejudicado no Brasil, segundo Sidarta, pela base escravista na qual se assentou a construção histórica do país. “Os ricos não dão muito valor ao trabalho. Os pobres trabalham para os ricos, mas não se apropriam do valor que esse trabalho gera, então não se interessam tanto pelo kung fu, porque não veem como isso levará ao seu desenvolvimento. Na arte popular, ao contrário, onde os pobres são dominantes, aí há excelência. A classe média, por sua vez, muitas vezes só pensa em ser rica, então não há kung fu”.
“Nós precisamos mudar essa cultura. A gente precisa de “Kung fu” no Brasil. A bússola do desejo deve ser seguida. Você tem que fazer aquilo que realmente gosta. Do contrário, não terá ânimo para se dedicar nem aguentará as vicissitudes que virão. Ainda mais em tempos como estes, em que a Ciência e a Educação são tão atacadas. Se você tem um grande sonho, não irá conquistá-lo em 24 horas. É preciso baby steps (pequenos passos) todos os dias”, recomendou o mestre aos novos alunos. “A Coppe é uma instituição que faz kung fu há décadas e o Brasil deve ser grato por isso”.
Voltando para um dos temas que lhe conferiram notoriedade, Sidarta pontuou que as pessoas precisam libertar o sonho. “Não estou falando aqui do ato de desejar. O sonho noturno, aquele quando você põe sua cabeça no travesseiro, está sob ameaça. As pessoas dormem muito pouco, vão dormir muito tarde, acordam muito cedo. Utilizam substâncias lícitas e ilícitas que inibem o sono. Álcool, pílulas, telas. Hábitos novos tiram a capacidade ancestral de dormir e sonhar”, avaliou o vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN.
“No meu livro ‘Oráculo dos Sonhos’, eu proponho que o mal-estar dos nossos tempos esteja ligado à perda do sono e do sonho. Talvez não seja à toa que a sociedade se encontre tão irritada, tão incapaz de encontrar alternativas. É uma contradição que em um momento no qual tenhamos tanto conhecimento à nossa disposição, tenhamos a sensação de que o mundo está se acabando”, refletiu Sidarta.
Sidarta convidou os alunos que acompanhavam a Aula Inaugural pela página da Coppe, no Facebook, a refletirem sobre uma passagem do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, do líder indígena Ailton Krenak. “Temos que sonhar mais, temos que ampliar os horizontes da existência, temos que nos responsabilizar pela 7ª geração depois de nós. Este é um princípio do pan-indigenismo norte-americano. Essa obra é uma convocação para ter uma postura diante do futuro. Hoje, as classes dominantes que regulam as finanças atuais não estão preocupadas com a geração atual”.