Água: da riqueza à pobreza
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Data: 10/10/2005
Apesar de tão importante quanto a questão da fome, o problema da água no país não virou prioridade em programas de governo. Os números não deixam mentir: água encanada não passa de promessa para 14% de todos os brasileiros que moram em cidades, 19% da população não utiliza banheiros convencionais, enquanto o esgoto de metade da população urbana ainda é lançado in natura. Resultado: o país gasta mais de 2,7 bilhões de dólares todos os anos para tratar de doenças transmitidas ou causadas por água contaminada. Investir em distribuição de água tratada e em coleta e tratamento de esgoto reduziria como por toque de mágica as imensas filas nos hospitais e postos de saúde, uma vez que 80% das consultas da rede pública e 60% das internações hospitalares dizem respeito a doenças causadas pela contaminação da água.
Coordenador do Laboratório de Hidrologia da COPPE/UFRJ e um dos maiores especialistas do país quando o assunto é água e esgoto, o professor Paulo Canedo aponta o mau funcionamento das companhias de saneamento pelo lastimável estado de atraso e pelo inacreditável desperdício de 46% de toda a água tratada no país, apesar de movimentarem um extraordinário volume de recursos (US$ 6,6 bilhões em 1999). A ineficiência, o caos administrativo e o uso político das empresas de saneamento constituem, em sua opinião, um dos maiores males do Brasil contemporâneo, impedindo os investimentos em conservação, ampliação e melhoria dos serviços à população.
Quem tem água no Brasil?
O Brasil é um dos países mais ricos do mundo em água doce. Concentra 15% das reservas do planeta. No entanto, um em cada sete brasileiros que moram nas cidades não é servido pela rede de abastecimento de água. É uma situação absolutamente inaceitável, mesmo para um país em desenvolvimento. A universalização do serviço urbano de distribuição de água tratada deve ser vista como emergência. O meio rural não pode ser esquecido, pois só as comunidades rurais bem próximas aos centros urbanos costumam ter algum tipo de saneamento e fornecimento de água de boa qualidade. Atualmente, um em cada três brasileiros que moram nas regiões rurais brasileiras não tem qualquer tipo de água encanada. O investimento necessário para alcançar a universalização do serviço urbano de água não chega a US$ 340 milhões por ano, o que é perfeitamente factível em uma economia como a brasileira e condizente com a maioria das tarifas de água cobradas no país. No caso do esgoto, cerca de 54% da população urbana continuam desligados da rede coletora e a maioria dos esgotos domésticos coletados não recebe tratamento adequado. Toda essa extraordinária quantidade de poluição orgânica é jogada nos rios onde as empresas de saneamento coletam as águas para o abastecimento público, aumentando significativamente os cursos de tratamento da água, exterminando a fauna e a flora dos rios e disseminando doenças rio abaixo.
E a crise é grande: São Paulo, a maior cidade da América Latina, está às voltas com problemas de abastecimento há anos. Um percentual cada vez maior das grandes cidades brasileiras sofre com falta d’água ou paga tarifas européias por um serviço de qualidade duvidosa. Nessa ciranda, a população pobre na periferia é a mais prejudicada. Seria preciso investir US$ 1,5 bilhão por ano, durante 10 anos, para alcançar índices razoáveis para o serviço urbano de esgoto. Nos cerca de 5 mil 500 municípios do país, apenas 13 tratam o esgoto.
Brasileiro gasta muita água?
Não existem dados exatos sobre o consumo, simplesmente porque as companhias de distribuição não têm como aferir o consumo. Oficialmente, o cálculo é de que cada brasileiro gaste, em média, 250 litros de água por dia. Na realidade, o consumo é bem mais alto: chega a 400 litrosou mais. No Grande Rio, por exemplo, a Cedae fornece 53 metros cúbicos por segundo. Dividindo esse total por 8,5 milhões de habitantes, chegamos a 550 litros/habitante/dia. Boa parte dessa água já tratada é perdida e, portanto, não é utilizada pelo cidadão usuário. Portanto, o Brasil gasta muita água. Só para comparar, o europeu gasta em média 120 litros de água por dia, enquanto um habitante da Eritréia tem que se contentar com 20 litros diários.
Quer dizer que o brasileiro é perdulário?
O consumo médio é alto, sim. Temos a cultura da fartura e hábitos como longos banhos diários que nos tornam grandes consumidores. Mas há que distinguir entre perda e desperdício. A perda é definida em função do volume de água vendida sobre o volume de água produzida. Você está pagando por toda a água que entra pelo seu hidrômetro. Quanto mais consome, mais paga. Consumo excessivo passa a ser uma questão econômica e de conscientização ambiental. Lavar a calçada com jato d´água, como ainda se vê muito por aí, vai acabar ficando caro.
Outra coisa é o desperdício. No Brasil, é de 46%, em média. Um absurdo! Imagina só: metade de toda a água tratada fornecida pelas companhias de abastecimento fica pelo meio do caminho. Sai através de tubos e canos mal conservados que se rompem, ou é desviada de outras formas. Isso é descaso.
Por que as empresas de água e esgoto não conseguem medir o consumo?
Na Europa ou nos Estados Unidos a equação é fácil, porque o bombeamento de água ocorre 24 horas por dia. É só medir quanto está entrando no cano. Se a companhia corta ou reduz o fornecimento, falta água. Aqui, no Brasil, a cisterna e a caixa d’água funcionam como armazenadores, uma reserva que acaba desresponsabilizando a companhia de abastecimento pelo bom serviço, contínuo e com qualidade. O abastecimento pode ser interrompido sem que se perceba o corte. Além disso, a interrupção no fornecimento é perigosa, porque pode contaminar a água.
As empresas de abastecimento são todas ruins?
As empresas de saneamento no Brasil, de forma geral, estão totalmente desacreditadas. São empresas ineficientes, mergulhads num caos administrativo, principalmente nos estados onde são usadas para fins políticos.
Quanto seria preciso investir para que cada brasileiro tenha água e esgoto?
Para que até 2015 todo cidadão tenha água tratada e esgoto canalizado, seria preciso investir o equivalente a US$ 40 bilhões de dólares. É preciso haver um plano estratégico para o setor. A obtenção desses recursos exclusivamente junto ao Erário é de difícil consecução. Por isso, cresceu o debate sobre a privatização parcial do setor.
O Brasil sofre de atraso tecnológico nessa área?
Não há obstáculos tecnológicos. O Brasil está acompanhando as últimas conquistas tecnológicas no setor. Só não as aplica por falta de investimentos.
A privatização é uma solução?
Esta não é uma questão dogmática, e sim de eficácia. Não devemos estar excessivamente preocupados em ser pró ou contra a privatização, e sim pró ou contra a eficiência. O Brasil não pode se dar ao luxo de suportar indefinidamente a ineficiência das nossas companhias de saneamento. Eficácia significa obter a quantidade necessária de água para tratar e distribuir a toda a população, ter cano chegando a todas as casas com fornecimento ininterrupto, ter a água com a qualidade adequada e uma tarifa justa. O Brasil precisa fazer com que todos esses índices melhorem. A privatização pode, ou não, ser um dos caminhos. Há vários exemplos, pelo Brasil afora, de tentativas de privatização de empresas de saneamento para quem oferecesse mais dinheiro na licitação, e não para aquele que apresenta o melhor plano de investimento. Esta prática pode melhorar o caixa do Poder Público, mas não a situação do saneamento.
Como fiscalizar os serviços de empresas de saneamento públicas ou privadas?
O serviço de saneamento constitui um monopólio natural. Não existe concorrência, e, portanto, não existe o sistema de defesa do consumidor promovido pelas forças do mercado, grande algoz do empresário ineficaz. Assim sendo, a privatização do setor de saneamento exige um órgão regulador forte e presente. Os críticos do processo de privatização alertam que o mesmo Poder Público que hoje se revela ineficiente na condução das empresas de saneamento será igualmente ineficiente na condução do órgão regulador, deixando a população à mercê da busca de lucros indevidos pelas empresas privadas de saneamento. Outro problema do setor de água é a disparidade entre as regiões a serem servidas. Não existe nada mais rentável do que um cano d’água em Copacabana. Em bairros densamente habitados, um único cano abastece centenas de famílias. O mesmo cano no Recreio dos Bandeirantes ou um bairro da periferia do Rio de Janeiro com menos habitantes por quilômetro quadrado, trará prejuízo. Ora, a tendência natural de uma companhia privada é maximizar os lucros e minimizar os prejuízos. Mais uma razão para a existência de um órgão regulador forte, que definitivamente não temos. Afinal, as experiências de privatização nos outros setores da economia mostram que uma empresa pode ser lucrativa, mas não estará necessariamente prestando um bom serviço. Portanto, repito: a privatização das empresas de saneamento não é um problema de credo, e sim de análise econômica.
Existe um modelo ideal?
Existem alguns exemplos bem sucedidos de gestão de empresas de saneamento, seja pelo setor público como pelo setor privado. Obviamente, a privatização não é o único caminho a ser trilhado. A Argentina fez uma grande campanha de privatização há quase 10 anos. Resultado: experiências boas, médias e ruins. Mas não teve nenhuma ótima. O modelo da golden share pode ser interessante. É uma espécie de parceria público-privada. Entrega-se ao setor privado a gestão da empresa, mas não a propriedade. O grupo privado que se encarregar da condução da empresa de saneamento terá participação nos lucros, desde que respeite as cláusulas contratuais de investimento e política tarifária. É uma experiência de introdução de administração privada na vida pública que vale a pena ser estudada.
A legislação brasileira de proteção aos recursos hídricos é boa?
O modelo de gestão descentralizada da água por bacias hidrográficas é maravilhoso. Temos leis excelentes.
O Comitê de Gestão da Bacia do Rio Paraíba fixou valor para o metro cúbico de água do rio Paraíba. O que você acha de se cobrar pela água?
Nós, do Laboratório de Hidrologia da Coppe, como artífices da experiência do Paraíba, soltamos foguetes com esta decisão. O valor é fixado pela própria sociedade de usuários do Paraíba do Sul. Trabalhei quase uma década. em prol deste processo.
Quer dizer que o dinheiro arrecadado é insuficiente para fazer as obras de despoluição do Paraíba?
Os R$ 12 milhões que serão arrecadados por ano mal arranham as necessidades de benfeitorias e obras no rio. Só para comparar: uma única estação de tratamento de esgoto custa mais, por volta de R$ 16 milhões. No entanto, não tenha dúvida de que as mudanças serão enormes. É preciso lembrar que, antes mesmo de passar a cobrar pelo uso da água, já houve mudanças drásticas, principalmente por parte da indústria.
Quem são os vilões da poluição no caso do Rio Paraíba?
O setor industrial é sempre o primeiro a responder aos apelos para salvaguardar o meio ambiente. A razão é econômica. Antes, era mais barato sujar a água do que mantê-la limpa. Hoje, sai bem mais caro. Atualmente, o esgoto doméstico é responsável por 86% da sujeira no rio Paraíba. É vergonhoso como sujamos nossos rios. Muitos deles já estão morrendo, pois sujamos infinitamente mais do que a capacidade da natureza de se regenerar. E as conseqüências são graves. Todo mês, o Brasil gasta o equivalente a US$ 230 milhões para tratar doenças de veiculação hídrica. Oitenta por cento das consultas da rede de saúde pública e 60% das internações hospitalares dizem respeito a doenças hídricas. Há uma conta segundo a qual cada dólar investido em saneamento significa uma economia cinco vezes maior em saúde pública. Portanto, é cinco vezes mais barato tratar do esgoto. Recife, uma das nossas maiores metrópoles, tem 2,5 mil casos de cólera por ano. É a cidade onde mais se consome água mineral no mundo. Um absurdo fazer com que a população tenha que comprar água 12 vezes mais cara do que água tratada.
Moralizar as empresas de abastecimento, então, é tarefa para o novo governo?
Sem dúvida, o governo Lula vai ter que encarar este novo problema. Existe a intenção de “acertar” as empresas de saneamento através do Programa Nacional de Modernização do Setor Saneamento. É curioso, no entanto, que nenhum dos candidatos à Presidência da República sequer mencionaram o problema da água durante a campanha. E, no entanto, a água do Brasil já não é mais somente brasileira. Com esta crise no mundo, o meu comportamento é observado pelo mundo todo. O lado bom da crise é que nós vamos perdendo a liberdade de maltratar a nossa água, porque água é um problema de sobrevivência.
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