Não temos este gás todo

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Data: 03/07/2023

Suzana Kahn, vice-diretora da Coppe

Durante o debate de lançamento do Centro Virtual de Soluções Tecnológicas de Baixo Carbono na Coppe/UFRJ mediado por mim e que contou com a presença de vários executivos de empresas de petróleo e de energia, várias soluções foram discutidas, desde as mais simples, como maior eficiência energética, às mais complexas, como uso do hidrogênio. Porém, um dos temas que habitualmente surge como uma solução intermediária para a transição energética foi o gás natural e qual seria seu melhor uso no Brasil.

Para a Europa, os Estados Unidos e outros países, o gás natural é uma fonte de energia que pode ser usada na transição energética, já que é abundante e com o custo competitivo com as demais alternativas. Este, porém, o que não é o caso do Brasil. Em nossa matriz energética, já com enorme parcela de fontes renováveis, o aumento do uso do gás natural para gerar eletricidade nos levaria para direção contrária à transição, pois é também um combustível fóssil, que gera emissões de carbono para a atmosfera.

Temos que considerar também o custo da geração de eletricidade com o gás natural, que é mais elevado para um país com base hidrelétrica como o nosso. Por isto, só é utilizado em termelétricas nos momentos de crise hídrica, quando os reservatórios ficam em níveis muito baixos, diminuindo a confiabilidade do sistema interligado nacional. Nossas termelétricas a gás natural são acionadas apenas para manter os reservatórios de água em níveis confiáveis, estratégia adequada pois assim se evita um aumento do custo de geração elétrica, tendo impacto na tarifa para o consumidor final.

Para o caso do uso do gás natural em indústrias, com o intuito de beneficiar a nossa tentativa de industrialização do interior, teria sentido se fosse com custo baixo. Caso contrário, nossa indústria perderia competitividade global. Nossos produtos ficariam mais caros do que os similares produzidos em outras regiões, pois nosso gás natural não é competitivo com outras fontes.

Nosso país é rico em petróleo, que tem como subproduto o gás natural associado. Temos poucas reservas só de gás natural livre. Isto implica em custos de separação e tratamento deste gás natural no mar, e ainda transporte deste gás a mais de 200 quilômetros de distância da costa brasileira, onde estão as principais reservas de petróleo. Além disto, o volume de nossas reservas é baixo, cerca de 0,1% do que são as reservas da Rússia, 1% das reservas do Qatar, 3% das reservas do Estados Unidos e 7% das reservas de Moçambique. E, nestes países, além da quantidade de gás natural, o custo de produção é baixo pois trata-se de reservas em terra e somente de gás natural.

Desta forma, o pouco gás natural que temos em nosso território nacional deve ser empregado da melhor maneira possível, maximizando o ganho para o Estado brasileiro e para a segurança climática.

Neste caso, as prioridades seriam: aumentar a produção de petróleo nos campos existentes e com investimentos já realizados, e isto se faz através da reinjeção de gás natural e água nos poços; e na direção da transição energética, ser o vetor para o processo de descarbonização de setores complexos em termos logísticos e de difícil redução das emissões de carbono, como setor de transporte rodoviário a longa distância, transporte aéreo e marítimo. Para reduzir as emissões destes setores, o gás natural pode ser usado na produção de hidrogênio “azul“ via CCUS (captura, sequestro e uso de carbono), nas refinarias para produzir diesel renovável a partir de óleos vegetais, o chamado Diesel R, e na produção de combustíveis sintéticos para a aviação, os denominados internacionalmente de SAFs (sustainable aviation fuels).

Adicionalmente, temos que considerar também que nossos campos de petróleo produzem, junto com o gás natural, muito dióxido de carbono (CO2), que precisa ser reinjetado, evitando sua liberação, agravando assim o fenômeno do aquecimento global provocado pelo aumento de concentração de carbono na atmosfera.

O Brasil pode não ter grandes reservas de gás natural não associado ao petróleo, mas possui inúmeros recursos naturais, e deve buscar nos recursos que tem com fartura a melhor solução para o aumento de demanda energética ou para a sua industrialização. É necessário também estar alinhado com uma transição justa, em que não apenas a ótica ambiental é considerada, mas também a equidade.

Não podemos deixar nenhuma região ou nação ser prejudicada pela transição para energia mais limpa. Ou seja, precisamos buscar um equilíbrio entre a redução de emissão de carbono e demais impactos ambientais com a lógica econômica e inclusão social, no suprimento de energia para o mundo.

O Brasil deve ser criativo na busca de uma industrialização moderna, seguindo um modelo próprio e em consonância com suas riquezas naturais. O que é bom para a Europa e para os Estados Unidos não nos atende necessariamente. Nós podemos seguir um modelo de industrialização mais original, de vanguarda, baseado nas fontes de energia abundantes e variadas que temos.

O interior do Brasil, a ser industrializado, tem enorme potencial para uso da biomassa para bioenergia, seja biogás ou biocombustível líquido, além do uso de energia solar, ainda pouco explorado. O conhecimento adquirido por conta da exploração de petróleo “off shore” nos capacitou enormemente para usar a energia dos oceanos. São inúmeras as possibilidades a serem exploradas, desde a já comercial eólica “off shore“, como as tecnologias ainda não tão maduras como energia das marés, das ondas, dos gradientes de temperatura e das correntes marítimas.

Portanto, devemos focar no que temos, que é muito mais do que qualquer outro país dispõe, ao invés de ficar olhando nossos vizinhos do norte.

*Suzana Kahn é vice-diretora da Coppe/UFRJ.
*Publicado na seção Opinião, do jornal Valor Econômico, em 29 de junho
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