Tecnologia a serviço da arte
Planeta COPPE / Engenharia Nuclear / Notícias
Data: 13/10/2008
Conciliar interesses distintos não é uma tarefa fácil, mas tem gente que chega lá. É o caso da carioca Cristiane Calza, 36 anos, pesquisadora de pós-doutorado da COPPE, que conseguiu conciliar em seu trabalho duas grandes paixões: a arte e a ciência. Cristiane desenvolveu um sistema portátil de Fluorescência de Raios X capaz de identificar a época em que um quadro foi pintado, a composição de cores utilizada pelo artista, a existência de retoques e possíveis falsificações.
Não é por acaso que o equipamento vem despertando grande interesse por parte de restauradores, dirigentes de museus e instituições de pesquisa, dentro e fora do País. Os dados são obtidos no próprio local onde a obra está instalada e de forma não destrutiva. O aparelho fica a um dedo de distância do objeto, o que elimina riscos de danificação e mantendo a integridade do quadro.
O sistema portátil é fruto de quatro anos de pesquisa feita por Cristiane para sua tese de doutorado defendida em 2007 no Programa de Engenharia Nuclear da COPPE, sob a orientação do professor Ricardo Tadeu Lopes. A primeira obra restaurada com base nas informações levantadas pela pesquisadora foi “Primeira Missa no Brasil”, do pintor Victor Meireles. Cristiane passou 30 dias no museu e mais dois meses no laboratório analisando detalhadamente os resultados. O esforço foi compensado: o quadro foi destaque da exposição do MNBA, inaugurada no final de 2007, como parte dos eventos comemorativos dos 300 anos da chegada da família Real ao Brasil.
O resultado do trabalho estimulou a pesquisadora a aperfeiçar o sistema portátil que já foi usado para a análise de mais 12 obras do MNBA que estão sendo restauradas para a reabertura da galeria em 2009. Entre eles se encontram obras de renomados pintores brasileiros do século XIX como “Estudo de Mulher” e “O Último Tamoio”, de Rodolfo Amoedo; “O Derrubador Brasileiro”, de Almeida Júnior; “Messalina” de Henrique Bernardelli; “Gioventú” de Eliseu Visconti; “Redenção de Can” de Modesto Brocos e “Elevação da Cruz em Porto Seguro” de Pedro Peres.
O sistema portátil de fluorescência foi associado com a técnica de radiografia computadorizada. O trabalho feito em colaboração pelos pesquisadores da COPPE, Davi Oliveira e Henrique Rocha, possibilitou a complementação das informações obtidas a partir das análises feitas por meio da fluorescência. Além da precisão e rapidez na obtenção dos dados – itens valiosos para o restauro de uma obra -, o fato de o sistema ser portátil, dispensando a locomoção de um quadro como o “Primeira Missa” que mede 2,68 x 3,56 m e está avaliado em R$ 6 milhões , foi um verdadeiro alívio em termos de economia e segurança para os dirigentes do museu.
“A maioria das técnicas utilizadas, tanto no Brasil como no exterior, exigem que a obra seja enviada para o laboratório ou locais específicos para ser analisada. Essa condição muitas vezes inviabiliza a realização do trabalho, seja no caso de um quadro de grandes dimensões ou de alto valor artístico-cultural que precisaria de todo um esquema especial de segurança e transporte”, afirma.
A versatilidade é uma das vantagens da técnica que permite analisar vários tipos de amostras: biológicas, ambientais, minerais e, principalmente, de arqueometria. É possível identificar, por exemplo, além da composição, a procedência e o período histórico de artefatos arqueológicos, suas técnicas de manufatura e, ainda, revelar falsificações, a partir de uma análise dos elementos químicos que os constituem.
Pintores brasileiros do século XIX sob a lente da nova tecnologia
No momento, Cristiane está analisando mais 20 quadros que pertencem à galeria de pintores brasileiros do século XIX, prevista para ser reaberta ao público em maio de 2009. Esta etapa inclui obras de Victor Meireles e Pedro Américo – tidos como os pintores mais importantes deste período no Brasil e os preferidos de Dom Pedro II – além de Eliseu Visconti, Almeida Júnior, Henrique Bernardelli e Belmiro de Almeida, entre outros. Entusiasmada com o trabalho, Cristiane resolveu tornar a pintura brasileira do século XIX o objeto de pesquisa do seu pós-doutorado na COPPE.
“Quero montar um banco que forneça o máximo de informações sobre o autor e a obra.. Vamos mostrar a paleta característica de cada pintor, identificar a presença de retoques ou alterações nas obras e ainda fazer um levantamento de suas condições gerais, revelando, quando houver, a presença de desistências ou pinturas escondidas”.
A Radiografia Computadorizada permite extrair informações como a técnica de pincelada do artista e o estado de conservação das obras, porque mostra detalhes como rasgos na tela, emassamentos e craquelamento da pintura. Tal conhecimento é essencial para um restauro cuidadoso da obra. Esta técnica revela, ainda, a presença de outros desenhos ou, algumas vezes, pinturas completas escondidas por baixo da obra analisada. “Já com a Fluorescência de Raios X podemos identificar a combinação de cores usada para criar tonalidades características de um determinado pintor como, por exemplo, o marrom de Van Dyck, o amarelo de Vermeer, o azul de Monet, etc.”, entusiasma-se a pesquisadora.
Mix de Indiana Jones e Macgyver
O sucesso obtido com a técnica mudou a rotina da pesquisadora da COPPE, que começou a receber convites para apresentar e aplicar sua técnica em museus de vários países. Amante de História da Arte e de História Antiga e Medieval, Cristiane costuma brincar dizendo que vive hoje um mix entre Indiana Jones e Macgyver. Embora não ande em busca do santo Graal, nem colabore com serviços de espionagem, com o equipamento portátil na mochila tem realizado alguns trabalhos de campo e enfrentado algumas missões pouco convencionais para uma profissional que até pouco tempo passava grande parte de seus dias no laboratório. Em fevereiro de 2007, por exemplo, foi ao Peru a convite do Museu Nacional de Sican e do Museu das Tumbas Reais de Sipan para analisar peças de ouro pré-colombiano que fazem parte do acervo arqueológico destes museus. Na ida, acabou tendo o equipamento retido no aeroporto por agentes da alfândega peruana que não compreenderam do que se tratava. Cristiane gastou horas para conseguir convencer os agentes que o aparelho era instrumento de pesquisa e só conseguiu liberá-lo no dia seguinte.
A pesquisadora constatou que havia mais cobre do que ouro nas peças pré-colombianas, contrariando as expectativas. Cristiane também já analisou a composição elementar de pigmentos encontrados nas pinturas decorativas da cartonagem do sarcófago de uma múmia egípcia do Período Romano – século I, considerada a peça mais rara do Museu Nacional da UFRJ. O objetivo da análise era saber se a múmia pertencia a um determinado sarcófago. Analisando o tecido que envolve a múmia e fragmentos da cartonagem, a pesquisadora da COPPE constatou que os pigmentos usados nos dois tipos de amostras eram do mesmo período. “Realizamos ainda testes de correlação para confirmar que tais amostras apresentavam a mesma procedência”, afirma Cristiane.
Ainda para o Museu da UFRJ Cristiane realizou outro trabalho na área de arqueometria: a análise de tangas cerâmicas da Ilha de Marajó. Triangulares e côncavas, as peças marajoaras eram provavelmente usadas pelas jovens índias durante rituais de puberdade. Cristiane explica que as tangas foram comparadas com o auxílio de um programa de estatística multivariada que permite verificar a relação entre as peças. “Apesar de análises quantitativas e qualitativas terem indicado uma semelhança muito grande entre as amostras das tangas, comprovamos a partir da análise multivariada que as peças pertencem a três grupos distintos, o que revela diferentes procedências”, explica.
Saiba como funciona a técnica usada no equipamento desenvolvido na COPPE
O sistema portátil de Fluorescência emite raios X que entram em contato com a pintura num processo conhecido como efeito fotoelétrico. Este processo ocorre quando fótons de raios X interagem com elétrons dos átomos que compõem o pigmento, retirando um elétron e criando uma vacância. O átomo passa então por um rearranjo eletrônico, no qual essa vacância é preenchida, ocasionando emissão de raios X com um determinado valor de energia. Com a utilização de um analisador multicanal, que faz a interligação entre o sistema e um notebook, é possível visualizar através de gráficos, chamados de espectros, os picos de energia gerados. Cada elemento químico apresenta valores específicos de energia, o que permite constatar sua presença e, consequentemente, identificar o pigmento utilizado na pintura. Se, por exemplo, forem encontrados os dois picos com os valores de energia característicos do elemento ferro (6,4 e 7,0 keV) numa coloração azul, de imediato será possível saber que o artista utilizou o pigmento azul da Prússia, já que este é o único pigmento azul que possui ferro em sua composição química.