Village Marie: os primeiros tijolos de um sonho nascido na UFRJ
Planeta COPPE / Engenharia Civil / Notícias
Data: 09/08/2021
Em 2019, o Planeta Coppe Notícias contou a história do Village Marie, projeto socialmente inovador criado pelo ex-aluno da UFRJ, Jac-Ssone Alerte, para levar ao seu país, o Haiti, um projeto de habitação social com tecnologia desenvolvida e testada na Coppe. A proposta era iniciar a construção de uma pequena vila de casas resistentes e sustentáveis, o Village Marie, destinado a 15 famílias, em Duchity, sua cidade natal, a oeste da capital haitiana, Porto Príncipe. Dois anos se passaram e a transformação social começa a se tornar realidade.
A proposta, que segue o conceito de Solução Habitacional Simples (SHS), que aprendeu durante seu curso de graduação, sob orientação do professor Leandro Torres di Gregorio, era que as casas fossem construídas pelas próprias famílias beneficiadas, em regime de mutirão, empregando na fabricação dos tijolos a técnica solo-cimento (mistura de solo, cimento e água, prensados), cuja composição e caracterização mecânica dos solos compósitos foram testadas no Laboratório de Estruturas (Labest), da Coppe.
O projeto liderado pelo ex-aluno da Escola Politécnica (Poli/UFRJ) está avançando, apesar dos percalços já esperados por quem pretender construir uma utopia no país mais pobre do continente, potencializados pela pandemia de Covid-19 e pela instabilidade política agravada pelo assassinato do presidente Jovenel Moïse.
A comunidade de Don de l´amitié (Dom da amizade, em português) não conta com fornecimento de energia elétrica nem de água encanada, uma realidade comum, infelizmente, em grande parte do Haiti. Para implementar o Village Marie e torná-lo uma verdadeira mudança de vida para seus vizinhos tijolos ecológicos seriam um ótimo ponto de partida, mas não seriam suficientes por si só.
Segundo Jac-Ssone, as pessoas em Don de l´amitié estão acostumadas a andar cinco quilômetros para levar baldes de água para casa. “É preciso colocar folha de bananeira para não cair água pelo caminho. Criamos um processo de captação da fonte que há na montanha. Em linha reta, o caminho se torna mais curto, 1335m, e a água chega com velocidade, estamos até pensando em criar reservatório na comunidade”.
Sabendo da necessidade de uma fonte confiável de energia para a construção das casas, Jac-Ssone chegou ao Haiti, com um gerador a diesel, com 10 hp de potência, doação do Canal Verde, ONG parceira do projeto. O preço do combustível e dificuldades em obtê-lo fizeram com que Jac-Ssone e sua equipe de voluntários pensassem em alternativas. “Começamos a instalar placas solares na comunidade, já temos uma minicentral de energia solar, que usamos para as necessidades mais comuns, de uso diário, como iluminação, uso de notebooks, recarga de aparelhos celulares. O gerador passa a ser o plano B, para fazer obra, parafusar telhas, perfurar o solo, fazer as fundações. Estamos tentando criar nossa utopia. Demos um passo gigantesco com água encanada e energia”.
Engajando a comunidade
Após conseguir reunir apoio e financiamento necessários, Jac-Ssone Alerte chegou a Porto Príncipe, capital haitiana, em 19 de outubro de 2019. “No dia anterior o Haiti estava bloqueado e viajei mesmo assim. Meu irmão, que me ajudaria com isenção fiscal na alfândega, estava doente, e a carga que levei comigo ficou retida. Foram três meses para conseguir pegar nossa carga. Havia 15 toneladas de cimento, mais telhas ecológicas para cinco casas, máquinas, gerador de energia, dentre outras coisas. Foi no dia 5 de janeiro de 2020 que eu comecei de fato”, relata.
“Além disso, era preciso organizar a coisa mais importante que há em um projeto social desse tipo, a comunidade, a base. Foram de dois a três meses de muita conversa para a comunidade entender a dimensão do sonho. Para seu projeto ter impacto duradouro e sustentável, tem que engajar. Se eu morresse amanhã, a comunidade já estaria engajada”, avalia o engenheiro.
Conforme relata o ex-aluno da UFRJ, foi preciso criar um site e formar uma equipe de voluntários. Para lidar com a burocracia, o Villa Marie virou uma ONG. “E uma vez no Haiti, tivemos que criar a minifábrica de tijolos, dividir as pessoas em linha de produção, promover regulação fundiária, para cada um ter seu terreno, sua casa”.
De acordo com Jac-Sssone, para reinventar uma comunidade, ainda mais em um país tão pobre e desigual, é preciso entender a sua sociologia e aprender a gerenciar conflitos, entender quem vai ajudar e quem vai tentar dificultar este processo de mudança. “Fazer o certo cria inimigos. Imagina você estar lá trazendo água e energia. Havia gente que vendia balde, caminhão de água. Quem fala mal do projeto não deve ser visto como inimigo e sim como alguém que ainda não compreendeu seus objetivos. A gente precisa ajudar o próximo, não levamos nada dessa vida”.
Romper o ciclo da pobreza
Cada casa do Village Marie tem 42 m², contando com dois quartos, uma sala, uma cozinha, um banheiro, uma varanda de conivência e um quintal pra as crianças brincarem. Elas são as primeiras na comunidade de Don de l´amitié a ter banheiros e cozinhas dentro. “Antes era impossível porque não tinha água, então cada residência local era composta por uma barraca, um banheiro a céu aberto e cozinha num espaço isolado usando fogão a lenha. Por isso, falamos que o Village junta três casas em uma só”, conta Jac-Ssone.
A meta inicial do Village Marie era a construção de 15 casas, beneficiando 75 pessoas, selecionadas por critérios de vulnerabilidade social. “Atualmente, são duas casas já prontas, duas em construção, 12 fundações feitas com o primeiro estoque de cimento.Buscamos também a regularização fundiária, para que todos tenham o direito pleno a seus terrenos, suas casas. O passo a passo foi ensinado para o mestre de obras, e a comunidade capacitada de fato. Já temos nossa minifábrica, e a capacidade foi expandida de 280 para 900 tijolos por dia”, detalha o ex-aluno da UFRJ.
Além disso, a comunidade foi capacitada para se tornar mais produtiva e autossuficiente, passando a ter um galinheiro, para o abastecimento de ovos, e produção agrícola, em sistema agroflorestal. “Cerca de 80% de tudo que o Haiti consome vem de fora, até ovo, milho vem de EUA e Republica Dominicana. Precisamos de mais independência. Se não plantarmos, vamos ter fome. Por isso, fizemos um acordo social para termos terrenos de uso coletivo. Assim, produzimos para consumo na comunidade feijão, milho, banana, cenoura, couve-flor, e já conseguimos vender parte do feijão produzido para comprar arroz, óleo e outros produtos que precisamos”.
Há dois anos, o Village Marie se tornou uma ONG, com 15 voluntários trazendo know how de outras ONGs do Brasil. “Temos a meta de contratar três funcionários, pois precisamos de algumas pessoas trabalhando de maneira mais permanente no projeto para que ele cresça. Nós buscamos inovações sociais, copiar experiências que foram bem-sucedidas em Medellín, não precisamos inventar a roda. Nossa inovação é concentrar inovações sociais em um único lugar. Queremos que o Village seja um modelo de gestão, para que haja outros Villages em outras comunidades, transferindo tecnologia e conhecimentos”, relata Jac-Ssone Alerte.
“Essa meta deve crescer, para que sejam construídas mais casas e também equipamentos públicos, escola, posto de saúde, padaria, igreja. Temos terrenos de espera para isso. É importante ser visionário, ver cenário de futuro. Estamos sendo demandados para fazer uma pousada, para alojar pessoas que venham em intercâmbio voluntário. É possível criar um conjunto de negócios sociais e reinvestir no Village, para assim, enfim, romper o ciclo da pobreza”, avalia o empreendedor haitiano, formado na UFRJ.
Novo capítulo em uma longa trajetória de instabilidade política
O Haiti é o 168º de 187 países no ranking de Índice e de Desenvolvimento Humano (IDH). De acordo com um estudo feito em 2016 com representantes de 30 famílias de Don de l’amitié, cada pessoa da comunidade vive com cerca de R$0,63 ou US$0,11 por dia. Esse valor é muito inferior à linha da pobreza extrema estabelecida pelo Banco Mundial (US$1,90 por dia).
Primeiro país latino-americano a declarar sua independência (em 1804), o Haiti é a parte ocidental da ilha de Hispaniola (que também abriga a República Dominicana) e já foi considerada a “Pérola das Antilhas”, pela produção de açúcar, café, cacau e tabaco. O país é caracterizado pela instabilidade política e pelos desastres ambientais, sendo afetado, com frequência por terremotos e furacões.
O Ayiti (nome que o território recebia de seus povos originários) foi isolado diplomaticamente após a brutal guerra contra os colonizadores franceses e somente teve seu isolamento rompido após o pagamento de pesada indenização à antiga metrópole, equivalente a dez anos da receita arrecadada pelo governo haitiano. Uma dívida que levou 122 anos para terminar de ser paga (em 1947) comprometendo as possibilidades de desenvolvimento socioeconômico.
Em mais um capítulo da conturbada história do país caribenho, o presidente Jovenel Moïse foi assassinado no dia 7 de julho, por mercenários colombianos, supostamente contratados por um médico haitiano residente nos Estados Unidos e um senador, que se encontra foragido. Na ausência do presidente eleito, o comando do país deveria ficar a cargo do presidente da Suprema Corte, o qual faleceu recentemente, vítima da Covid-19. A indefinição acerca da sucessão do presidente Moïse, a realização de novas eleições, e as investigações acerca do crime agravam a situação do país, atrasado na imunização contra a Covid-19.
“A minha geração não está acostumada com ato bárbaro desses. É uma ameaça à jovem democracia que temos”, afirma Jac-Ssone Alerte. “Eu vejo um país que não funciona. Economia, saúde, educação, não funcionam para todos. Então, a grande maioria não dorme porque tem fome e a minoria não dorme porque tem medo que a maioria se revolte. Nós precisamos criar um país que funcione para todos”.
A facilidade com que os criminosos burlaram a equipe de segurança do presidente (a conivência desta está sob investigação) assustou os haitianos na capital Porto Príncipe e em Duchity não foi diferente. “Qualquer um pode chegar aqui e me matar. Se mataram o presidente, eu estou seguro?”, questiona o engenheiro formado pela UFRJ. “Mas, aqui nós buscamos criar um Haiti dentro do Haiti. Mais justo, quando funciona para todos, você se sente mais seguro”.
Somando tijolos
Além dos voluntários brasileiros que ajudam o projeto em áreas como marketing e questões burocráticas, e dos doadores e financiadores, o Village Marie conta com apoio de empresas como a Canal Verde (logística da importação de materiais vindos do Brasil e que financiou o gerador de energia usado na comunidade); Due Log (canalização de água potável); Zaio Intercâmbios (compra de materiais e organização de intercâmbio de voluntários); Manacá Arquitetura (concepção de equipamentos comunitários).
Saiba mais sobre o projeto no site do Village Marie. A utopia no horizonte dos haitianos depende de trabalho voluntário, apadrinhamento e doações. Clique aqui e saiba como ajudar.
- Village Marie