A dificuldade para lidar com as fake news e com o controle das grandes empresas sobre as redes sociais marcaram o quarto e último debate do fórum virtual “O Brasil após a pandemia”, promovido pela Coppe/UFRJ. O debate sobre “Internet e Ética”, realizado dia 22 de abril, contou com a participação dos jornalistas Glenn Greenwald, editor da publicação on-line The Intercept, e Pedro Doria, colunista do jornal O Globo e cofundador do Canal Meio. Transmitido ao vivo na página da instituição no Facebook, o evento foi mediado pelo professor da Coppe, Luiz Pinguelli Rosa. O vídeo está disponível na página da instituição no YouTube.
Na avaliação de Dória, embora a Internet não seja tão recente, ela se tornou o principal meio de comunicação, há cerca de cinco anos, e é dominada por um conjunto de empresas que devem coibir a disseminação de informações falsas.
Embora seja uma tarefa difícil precisar o que são informações falsas, no momento em que vivemos, sob uma grave pandemia, a confiabilidade da informação pode significar vida ou morte. “O presidente parou de falar de cloroquina. Por que será? Porque pesquisas recentes mostraram que ela não surte o efeito desejado e pode mesmo ter contribuído para mortes”, lembrou Doria.
“Com a internet, a imprensa tradicional teve a sua importância relativizada. Não são mais os jornalistas que informam. Às vezes são artistas, que são procurados na própria internet pelo público em busca de informações. Jornalistas cometem deslizes, mas bem ou mal têm algum tipo de treino para lidar com informação e ética”, ponderou o colunista do jornal O Globo.
O jornalista Glenn Greenwald iniciou o debate refletindo acerca das medidas de vigilância estabelecidas pelas autoridades públicas para evitar aglomerações sociais, bem como sobre a possibilidade das grandes empresas, como Facebook e Twitter, censurarem informações consideradas falsas. Glenn, que morava em Nova Iorque à ocasião dos atentados terroristas de 11 de setembro, lembrou que “todos só queriam ser protegidos e apoiariam qualquer coisa que o governo propusesse para ter mais segurança. Depois que passamos a pensar no futuro e no que seria o momento seguinte”.
“Em relação à pandemia, eu me flagrei pensando que precisamos de mais espionagem para evitar medidas mais repressivas. Mas aí pensei: sempre me posicionei contra dar maior poder para o Estado e tenho medo da espionagem. Como posso estar pensando diferente? É o nosso instinto pensar em segurança, como evitar o vírus, como evitar mortes. Mas, temos responsabilidade para pensar da forma mais racional possível”, afirmou o fundador do The Intercept Brasil.
“Quando vejo o presidente e seus filhos disseminando informações falsas, que há cura, quando não há, que é gripezinha, quando a doença é bem mais séria, parte de mim fica feliz quando vejo o Twitter censurando essas mentiras. Por outro lado, me causa preocupação essas empresas americanas censurando e dizendo o que pode, e o que vale no debate. Se aceitarmos medidas que deem mais poder ao governo e pensarmos que é temporariamente, elas se tornarão permanentes. Governos e empresas não abrem mão de poder, isso é um mito”, alertou Glenn Greenwald.
Como exemplo, o jornalista, vencedor do prêmio Pulitzer (2014) destacou que as empresas pretendem censurar informações que contradigam as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Isso é muito perigoso, pois às vezes o consenso científico está errado. As próprias declarações da OMS há cinco semanas, em março, estavam erradas e foram revistas. Nós devemos ter o direito de negar e questionar o poder das autoridades. Devemos ter cautela de que essas empresas possam controlar o que se diz”.
Pedro Doria concordou com o receio de Greenwald sobre conceder, ainda que temporariamente, poder de censura às grandes corporações. “Por um bom motivo, pela Ciência, damos esse poder. Passada a crise, elas podem se acostumar a isso. Eu prefiro o que é feito na Alemanha. A primeira-ministra Angela Merkel em vez de censurar o cidadão, lhe dá toda a informação disponível. Bem informado, ele fica em casa por escolha própria”.
Para Glenn, os alemães confiam no governo, porque Merkel informa a população e as informações não são conflitantes, são confiáveis. “Em países como Brasil e Itália, as pessoas perdem a confiança na imprensa, na classe política, nas autoridades. Isso abre espaço para o populismo. Pessoas como Bolsonaro dizem ‘não confiem na Globo, ela mentiu para vocês. Não confiem na OMS, ela mentiu para proteger a China’. A perda de credibilidade das instituições abre espaço para demagogos. Por isso, Alemanha, Coreia do Sul, e outros países se saem melhor, pois a população acredita em suas autoridades”, comparou.
Fake News e as grandes corporações
Na opinião de Pedro Doria, não é possível controlar plenamente a disseminação de Fake News, pois muitas pessoas querem acreditar nelas, sentem que elas reforçam crenças, opiniões preconcebidas. “Dificilmente se vai convencer essas pessoas, porque não se trata de informação e sim de fé. É o espírito de nossos tempos. Meios de comunicação novos podem servir a isso. Mussolini usou o rádio contra a democracia, mas Franklin Delano Roosevelt (ex-presidente americano) o usou para unir a população. O problema não está no veículo. Por ele ser novo, as pessoas não desenvolveram ainda ‘anticorpos’ para perceber onde estão as pegadinhas. A única solução de longo prazo é criar anticorpo, se habituar ao veículo, e no futuro as pessoas olharão para nossa geração e pensarão como será que eles acreditavam nisso? ” analisou Doria.
Segundo Glenn, em entrevista recente Mark Zuckerberg (dono do Facebook) disse não ser competente para censurar, para dizer o que é verdade ou falso. “Nisso, ele está certo. Mas há a questão de interesses. Quando países poderosos como China ou Israel pedem, as empresas censuram. O Facebook censura muito mais páginas de palestinos quando o governo de Israel pede, quando diz que incita terrorismo”.
Para o fundador do The Intercept Brasil, os jornalistas devem fazer autocrítica, pois as pessoas estão acreditando mais em mensagens anônimas ou de fontes desconhecidas que recebem no Whatsapp do que nos jornalistas profissionais de veículos tradicionais.
Segundo Pedro Doria, há uma questão que faz com que essas empresas não sejam tão inocentes: os algoritmos. “Como fazer a pessoa passar muito tempo na rede social? Com Inteligência Artificial, por machine learning (aprendizado de máquina). Quanto mais indignada você deixa a pessoa, mais tempo ela passa online naquela rede social. É uma decisão que faz sentido do ponto de vista de negócios, que faz com que você seja exposto a informações que te provoquem constante indignação. Isso explica, em parte, porque somos cada vez mais indignados em todo planeta”, refletiu.
Na opinião de Glenn Greenwald, a Internet é ambivalente, ela pode ajudar cidadãos contra facções poderosas ou levar justamente ao contrário. “A Internet na sua arquitetura é descentralizada. Sempre será possível criar um ambiente onde tudo pode. É um espaço de liberdade que pode ser usado tanto para combater ditaduras quanto para cometer crimes. Isso sempre existirá e por isso sempre teremos que discutir como lidar eticamente com esta ferramenta. Deep web, bitcoin são tentativas de fazer a Internet como no princípio, fora do poder dos Estados e corporações. Termos essa ferramenta descentralizada é melhor do que não a ter”, avaliou Glenn.
Internautas perguntam: é momento para impeachment?
Além de discorrerem sobre o tema proposto Internet e Ética, Glenn Greenwald e Pedro Doria foram questionados sobre política pelos internautas que assistiram à transmissão do debate na página da Coppe no Facebook. Ao comentar os temas levantados, os jornalistas opinaram sobre a possibilidade do presidente da República, Jair Bolsonaro, ter cometido crime de responsabilidade ao estimular aglomerações sociais, e, neste caso, passar por um hipotético processo de impeachment.
Doria lembrou que o Brasil tem uma história marcada por períodos ditatoriais e que, em sua opinião, o atual presidente testa, “a todo tempo”, os limites da democracia. “Ele acredita que sua sobrevivência política depende de tirar a importância da pandemia. E não há muito que possamos fazer no limite da legalidade para impedir isso. Não é uma ideia confortável para se conviver. Ele é o desinformador-geral da república. Mas eu acredito na democracia e que ela sobreviverá ao Bolsonaro”, respondeu o colunista do jornal O Globo.
Glenn, que além de jornalista é advogado constitucionalista, evitou opinar acerca de um possível crime de responsabilidade, por conhecer melhor o Direito de seu país. Também não quis emitir opinião mais forte sobre a hipótese de impedimento do presidente, pois o partido de seu marido, o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ), impetrou um pedido de impeachment. Mas, no final, teceu um breve comentário: “acho que há motivo jurídico, sim, mas tenho dúvida sobre os benefícios de abrir esses processos nesse momento de pandemia”.
Pedro Doria também avaliou não ser o momento adequado para deflagração de um processo de impeachment. “Não podemos paralisar o Congresso por oito meses, ele precisa se concentrar em temas sanitários e econômicos”, opinou.
O jornalista americano se sentiu mais à vontade ao responder sobre política internacional. Em sua opinião, neste momento a União Europeia não existe mais na prática. “É incrível que na Europa todos os países estejam com suas fronteiras fechadas. Quando a pandemia começou, as nações mais ricas não estenderam a mão para Itália e Espanha, que recebeu ajuda da China, por conveniência política desta”, mencionou Greenwald.
Para o jornalista, a pandemia mostra o quanto o mundo está conectado e ao mesmo tempo fortalece discursos nacionalistas e xenofóbicos. Há um movimento para culpar a China, o que pode criar um conflito perigoso entre Ocidente e China. Não há solução que não seja internacional, com os países colaborando. Mas a História mostra que tempos de crise trazem nacionalismos e pessoas culpando outros países. Ainda assim, eu quero acreditar que o que estamos passando sirva para um mundo mais conectado.
Questionado sobre as medidas de ajuda econômica e transferência de renda, discutidos pelo governo federal, pelo Congresso Nacional e pela sociedade civil organizada, Doria avaliou que as medidas afastam a política econômica do liberalismo da Escola de Chicago, vertente defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e a aproxima do liberalismo social.
“Concordo com o Guedes que o Brasil tem uma economia muito fechada e uma decorrência disso é que temos indústria precária e que emprega pouco. Existe um lado do nacional-desenvolvimentismo brasileiro muito equivocado. O governo anunciou um pacote de um trilhão de reais que, na verdade, são 200 a 300 bilhões de dinheiro novo. O restante seria antecipações ou liberação de recursos bancários”.
Na avaliação do criador do canal Meio, este não é o momento de Milton Friedman (economista americano, expoente da Escola de Chicago), é o momento de John Maynard Keynes (economista inglês, defensor do aumento de gasto público, em determinadas circunstâncias, para fomentar a geração de empregos). “É o momento em que o Estado coloca dinheiro para dar partida, é como dar partida em carro. Mesmo os bastiões liberais, como os jornais Financial Times e Wall Street Journal, dizem isso. No entanto, de todos os economistas liberais brasileiros, Guedes é o mais mal equipado para isso. Ele não gosta de Keynes”, criticou Pedro Doria.